31.10.13
Há uma cena, ou antes, um motivo, recorrente em certos filmes «sociológicos» ou «pedagógicos»: o do toque agudo da campainha que interrompe o discurso do professor, que estaria a dizer coisas importantes, úteis, ou tímidas, ou confessionais, ou poéticas, ou confusas, tanto faz. Pouco importa a perspectiva que o cineasta e o argumentista têm sobre «a escola» ou «o conflito de gerações»: fica sempre aquele desconforto de uma frase a meio, interrompida com estridência esperada ou inesperada, e que deixa uma ideia em suspenso, uma emoção em suspenso, até à aula seguinte talvez, mas provavelmente até nunca mais, porque não se retoma exactamente o ponto onde se ficou. E há um grande alarido de mesas, cadeiras, mochilas, remoques. O que me impressiona nessas cenas não é a visão sobre os bons ou maus modos docentes e discentes, mas aquele momento de interrupção brutal, mesmo que normal, previsível: uma interrupção imediata, que nem dá tempo a que se acabe uma frase. É uma tragédia mínima, o pequeno colapso de um indivíduo impotente perante o seu próprio desinteresse. Mas, de certo modo, não é tragédia nenhuma. As aulas têm uma duração. Há um toque que diz quando acabam. E as pessoas vão-se embora. É assim, com ou sem campainhas, em todos os acontecimentos, em todas as vidas, em todas as ilusões. Uma coisa acontece, ou parece estar a acontecer. E quando toca, acaba.
A imunidade
Não «impunidade» mas «imunidade», quer dizer, um estado onde mutuamente somos quem somos, mesmo quando custa; onde nenhum mal é deliberado, e todo o bem é enigmático e evidente.
29.10.13
Juste une image?
«The Pervert’s Guide to Ideology»
Sophie Fiennes | 136' / Reino Unido, Irlanda / 2012
Os autores de «The Pervert's Guide to Cinema» [O Guia de Cinema do Depravado] regressam. O filósofo Slavoj Žižek e a realizadora Sophie Fiennes usam a sua interpretação das imagens em movimento, para apresentar uma viagem cinematográfica emocionante ao coração da ideologia - os sonhos colectivos que configuram as nossas crenças e práticas.
Como pode o cinema ser uma máquina ideológica que determina, estética e politicamente, as nossas representações do mundo? A associação entre cinema e propaganda é antiga e evidente, mas tem, ainda hoje, formas muito efectivas de se renovar e de contribuir enquanto instrumento de controlo e normatização. Por outro lado, é também no cinema que todas as ideologias foram sendo explicitadas, desconstruídas, denunciadas, reforçadas. Neste programa o cinema faz auto-análise.
O documentário é exibido amanhã, 30 de Outubro, às 22 h, na Voz do Operário, inserido na programação do Doclisboa. A sessão é seguida de uma conversa informal entre o público e os convidados Daniel Oliveira e Pedro Mexia.
Exemplo duma pessoa feliz
Exemplo duma pessoa feliz é o seguinte: um indivíduo acorda no meio da noite e vê o quarto ligeiramente iluminado. Não sabe se é madrugada ou se o candeeiro da rua projecta o clarão nos vidros da janela. Pergunta para si própria: «Que horas serão?» Nesse preciso momento, o relógio da torre bate duas, três ou seis badaladas. A pessoa fica imediatamente elucidada e dissipa-se o seu problema. Devo dizer que esta hipótese é muito rara.
[Agustina, Caderno de Significados, 2013]
[Agustina, Caderno de Significados, 2013]
28.10.13
Oitenta anos
Tem agora exactamente o dobro da minha idade. Somos às vezes muito parecidos, embora com mundividências diferentes e gostos quase opostos. É provável que se tenha enganado e cometido erros na vida, como toda a gente. Mas em 40 anos nunca lhe conheci uma atitude moralmente repreensível. Tenho orgulho em ser seu filho.
27.10.13
Lou Reed, 1942-2013
Passei quase toda a adolescência indiferente ao chamado «rock»: ouvia, trauteava, achava agradável e esquecível. Depois encontrei-me com um punhado de discos e com uma dezena de senhores e senhoras. Estes cinco da fotografia foram a minha Estrada de Damasco. [Explicarei porquê no Expresso, e hei-de republicar aqui o texto.] Obrigado, Lou.
Uma cabeça no ombro
«E com o que é que sonhaste?». «Com uma cabeça deitada num ombro». «Um sonho bom?». «Não sei; vai continuar esta noite, depois conto-te».
Querer tudo
Não quero tudo, nunca quis tudo, e mesmo que quisesse, é impossível. Mas quando quero uma coisa, quero tudo, o bom e o mau, o eufórico e o difícil. Sou um idealista pessimista: não tenho pressa nenhuma e aprendi a viver com o medo.
Empatia
O que é terrível na chamada «empatia» é que não depende da nossa bondade, mas de uma «capacidade negativa» de sermos o que não somos, o que não conseguimos, por incapacidade, não por maldade. Em períodos muito difíceis, assisti pessoas a tentar a empatia e a falhar miseravelmente: não uma, não várias, mas todas, ou quase todas. E compreendi que isso não indiciava qualquer defeito ou fraqueza. Por isso, ainda hoje, poucas coisas me assustam mais do que a «empatia», que nos julga à luz de expectativas abstractas, compreensíveis mais quase imateriais, frágeis, impacientes, indignadas. É como se a «empatia» fosse um conceito calvinista: ou nos é reconhecida ou não é, independentemente das nossas acções e dos nossos corações. Ou nos salvamos, ou então estamos condenados.
O que é a arte?
Ainda hoje não sei exactamente a resposta a esta pergunta, mas estaria ainda mais longe de uma resposta sem ter lido críticos americanos como Clement Greenberg ou Arthur Danto, que acaba de morrer, aos 89 anos. Incomodam-me certos aspectos da sua teoria semi-«sociológica» da arte, mas Danto também era filósofo, e defendia a arte como um objecto interpretável. E um objecto interpretável é, de certo modo, um enigma. Tudo está bem quando acaba em dúvida.
O que é a vida?
Acredito na «dignidade» da vida, mas muitas vezes pergunto-me não «o que é a vida?» mas «para que serve a vida?», como se a tal dignidade dependesse de uma utilidade.
Hora de inverno
Entrámos agora oficialmente na «hora de inverno», e sei que mexeram nos relógios, mas, uma vez mais, não sei nada de nada sobre horas ou invernos.
26.10.13
Missão impossível
Ontem avisei determinada pessoa: «Isto que eu vou dizer vai autodestruir-se dentro de cinco segundos», como na Missão Impossível. Tratava-se de uma evidência antiga, aparentemente secreta ou oculta, e resolvida há muito, mas que eu precisei de confessar, porque vivo num mundo diferente mas continuo patologicamente verbal. Fiz o que tinha a fazer. Mas agora temo que tudo o que diga se autodestrua de imediato. Ou me autodestrua. Ou que a mensagem que deixei gravada nem chegue ser ouvida.
25.10.13
Dois volumes
«Write what you know» é uma regra antiga para jovens escritores. «Escreve sobre aquilo que conheces», ou seja, «que viveste ou observaste»; o que, genericamente, me parece um conselho útil. Mas claro que em português também podemos traduzir de outro modo: «Escreve sobre aquilo que sabes», ou seja, «de que tens a certeza». Mas se formos por aí, fica um romance em dois volumes.
Reserva mental
Quando andava a estudar aquela geringonça que estudei durante um quinquénio, achava graça à existência de alguns termos que conhecia apenas enquanto expressões comuns mas que na verdade também são conceitos jurídicos. Um deles é o de «reserva mental»: quando, num contrato, um dos contraentes está decidido, in pectore, a não cumprir aquilo a que se compromete. Uma simulação mental, aparentada à mentira, mas mais «sofisticada», talvez, e portanto mais detestável. Com o tempo fui aprendendo que não se trata de uma expressão qualquer ou de um conceito banal: a reserva mental é um dos fundamentos da civilização, pelo menos da civilização que conheço bem, que é Lisboa. Por isso, a indesmentível ausência de reserva mental em alguém que conheço mal parece-me sempre estranha, improvável, fantástica. É o começo de uma bela amizade.
Deixe mensagem
Como quase toda a gente, ouço conselhos de pessoas de quem gosto e em quem confio. Mas dispenso conselhos não-solicitados, sobretudo quando são retóricos, pomposos, ou então auto-elogios, infalibilidades papais, memórias selectivas, historietas despropositadas, sagezas serôdias, ou aquele tom de superioridade que, tantas vezes, se manifesta em gente da minha idade. Lembro-me sempre de um político inglês especialmente moralista, do qual se dizia que tinha como atendedor de chamadas a seguinte gravação: «Leave a message after the high moral tone».
Um estudo em Scarlett
Quando dei conta de Scarlett Johansson (que já fazia filmes há uns aninhos),achei não apenas que ela era a jovem mais encantadora do nosso sistema solar, mas também uma actriz com futuro, se tivesse bons agentes, boas propostas, bom gosto. Aquela menina com rosto de Vermeer, mas com uma anatomia e uma carnalidade que intimidaria o cavalheiro de Delft, chegaria onde quisesse. Infelizmente, tirando os good looks, a promessa não se manteve, justamente numa década da vida em que chovem os grandes papéis. Aos 28 anos, Scarlett entrou em quase quarenta longas-metragens, mas para o meu gosto só duas ficarão na história do cinema, Lost in Translation (2003) e Match Point (2005), e não é por acaso que são de gente chamada Coppola (Sophia) e Allen (Woody). Dir-me-ão que estou a ser injusto, e que O Barbeiro (dos Coen) e Mundo Fantasma (de Zwigoff) não são de desprezar. Admito. E acrescento um filmezinho elegíaco quase desconhecido e muito apreciável chamado Uma Canção de Amor, de 2004. Haverá até quem gosta de A Dália Negra ou O Terceiro Passo (não contem comigo), já para não falar no baboso Vicky Cristina Barcelona. Ainda que contássemos com todos estes títulos, e só um incondicional o faria, restam dezenas de inanidades «juvenis», comédias sem nexo, filmes com super-heróis, umas femmes fatales às três pancadas. É pena, porque há poucas actrizes a representar aquele «tipo», com aquela intensidade, naturalidade e confiança, apesar de uma certa limitação de registos. Talvez seja preciso que passe de miúda a mulher, não sei. E talvez chegam melhores propostas, melhores agentes, melhores escolhas. No cinema, ser uma obra-prima ajuda; mas fazer obras-primas também é essencial.
24.10.13
Encontrar
Perguntou: «O que procuras numa mulher?». Respondeu: «O que encontrei». [Talvez fossem duas pessoas a conversar, mas a mim pareceu-me um monólogo.]
Dean and Britta
Frances Ha tem também, em pequenos papéis, dois músicos de gosto excelente que são um casal há muitos anos, e que, além do talento, possuem material genético que vale discos de platina: Dean Wareham e Britta Phillips; aqui numa má gravação ao vivo de «Knives from Bavaria», canção que me diz muito, por razões que a gerência não divulga.
23.10.13
Ha
É quase impossível não gostar de um filme dirigido por Noah Baumbach, meu quase coetâneo de 1969, interpretado por Greta Gerwig, e escrito por ambos, que ainda por cima, agora, são um casal. Não conheço a sua segunda e terceira longas, que nunca passaram por cá, mas o «opus 3», Kicking and Screaming (1995) é uma história de coming of age entre jovenzinhos bem apessoados, bem lidos, entediados e bloqueados que faria inveja a Fitzgerald, e que, nos dias de hoje, só poderia ser filmada por um Whit Stillman. Depois veio A Lula e a Baleia (2005) e saí da sala combalido, «eu conheço isto, eu compreendo isto, eu queria ter feito isto, eu quero ser amigo desta pessoa». Pouco me importa, enquanto espectador, o contexto especificamente nova-iorquino, as indiscrições biográficas, os pais famosos (romancista, crítica de cinema), isso é tudo biografia: para mim A Lula e a Baleia é sobre a família como força insubstituível e insuportável, sabotadora e estranhamente reconfortante, porque previsível, mesmo quando enfurecedora. E gosto da maturidade triste das crianças e das infantilidade quase risível dos adultos, e das metáforas óbvias e poderosas, e da cultura como acessório, maldição e idioma para as nossas emoções e traumas. Margot e o Casamento (2007) e Greenberg (2010) eram, cada um à sua maneira, mais previsíveis no desenho de um colapso da meia-idade, mas as cenas imprevisíveis, inacabadas, absurdas, davam uma pungência pouco vista em Nicole Kidman e nunca vista em Ben Stiller. E o recente Frances Ha (2012)? É um filme que nos desarma, sem ser nunca uma obra notável. Baumbach, que se tinha divorciado de Jennifer Jason Leigh, queria fazer um filme de «divorciado», o que significa tantas vezes um reencontro com a vida, com a alegria, os imprevistos, até as parvoíces. Sendo Greta Gerwig a sua parceira profissional e pessoal, teve espaço para improvisar, quer dizer, repetir até parecer improviso, certas cenas e situações, verossímeis e estapafúrdias. Filmou a preto-e-branco, com uma sequência narrativa um pouco desconexa, homenageando tanto a Nouvelle Vague (sem a literatura) como o movimento americano do «mumblecore» (sem a afasia). Ainda que fala de gente que vive «da mão para a boca», à deriva mas não na pobreza, porque os baumbachianos são sempre elitistas da Costa Leste, que se referem displicentemente a Gainsbourg e Thoreau. Greta Gerwig, sem ser de uma beleza cinematográfica convencional, é adorável, desajeitada, brincalhona, dada a impulsos, piadas secas, tristezas que passam logo, euforias precárias, e os mais atentos conhecem-na há quase uma década como rainha indie (em Hannah Takes the Stairs, 2007; Damsels in Distress, 2011; Para Roma com Amor, 2012; ou Lola Versus, 2012). Mas esta sua Frances Halladay, «parisiense» sem glamour, Woody-allenesca sem divã austríaco, é uma mulher à procura de uma personagem. Tem 27 anos, é vagamente «complicada» (mas não muito), e brincam dizendo que é «undatable». Mas o que vemos é um coração puro e um corpo irrequieto, que não encontra o lugar certo na vida porque o dinheiro não é muito e porque os seus amigos não valem nada. A «melhor amiga» é das personagens mais insípidas e interesseiras dos últimos anos, e um possível namorado, aquele estranhíssimo indivíduo meio bruto meio autista que Lena Dunham descobriu na série Girls (chama-se Adam Driver), tem muito pouco que fazer. Salva-se a câmara móvel, a atravessar as ruas e os apartamentos de festas mortiças, as canções anglófonas e as chansons, o júbilo de começar de novo mesmo quando as coisas não prometem grande coisa, e salva-se o eixo Cidade Luz-Big Apple, parodiado numa cena espantosa com soníferos e uma viagem idílica e infrutífera. Há uma razão para que o apelido de Frances, «Halladay«, seja abreviado para «Ha», mas de facto funciona quase como uma sinopse, ou antes, uma carta de intenções. Um filme dirigido por Baumbach, interpretado por Gerwig, e escrito pelos dois, não podia ser mau. Mas esta é talvez apenas um interlúdio, vivido, gracioso, terno, que passa num sopro, e que tem o sopro de uma carta de amor.
Coração
É como uma adivinha infantil: quem ganha o combate entre um coração de ferro e um coração puro?
21.10.13
Poema romano
A saudação dos gladiadores na arena é fácil de compreender: «Os que vão morrer [talvez dentro de instantes] saúdam-te» (ao Imperador, seu soberano). Mas interessa-me uma outra saudação, menos bélica e hierárquica: eu, que um dia vou morrer, como vamos todos, saúdo-te porque reconheço em ti uma soberania que não é um poder, mas uma graça.
20.10.13
Os moderados e os mornos
Há uma enorme diferença entre «os moderados», que na linguagem comum são em geral bem-vistos, e «os mornos», que na linguagem bíblica são abominados: é que os moderados relacionam-se com as coisas vulgares; e os mornos com as fundamentais.
18.10.13
Balzac
Wilde dizia que quando nos habituamos às personagens de Balzac, as pessoas que conhecemos de facto parecem-nos sombras ou sombras de sombras. É uma frase de que gosto muito, porque defende Balzac, a leitura e a misantropia. Mas sucede que, muito de vez em quando, Wilde não tem razão. E Balzac não interessa nada.
15.10.13
Cinco ou seis segundos
Os «cinco ou seis segundos» de harmonia de que fala Kiríllov: «Não é uma coisa terrena; não quero dizer que seja celeste, mas apenas que o homem, na sua forma terrena, não a pode suportar. Precisa de mudar fisicamente ou morrer. É um sentimento claro e irrefutável. Como se de repente sentíssemos toda a natureza e disséssemos: sim, é verdade». E o outro responde-lhe: «Tenha cuidado Kiríllov, tenho ouvido dizer que é assim que começa a epilepsia».
[Os Demónios (1872), tradução de António Pescada, Relógio D'Água]
[Os Demónios (1872), tradução de António Pescada, Relógio D'Água]
Peste emocional
«Você contagiou-me da sua inquietação e desassossego, Nastenka, até ao ponto de me ter esquecido do tempo» - diz o herói das Noites Brancas, o noivo dessa cidade boreal e cujos cantos estranhos o sonhador percorre em idílio profundo. «Nunca estará só» - diz-lhe Nastenka, como despedida. Essa é a prova do amor incorrupto, o legado dum coração que nem é fiel, nem desiludido. É apenas um coração humano (...).
[Agustina, «Dostoievski e a Peste Emocional», em Contemplação Carinhosa da Angústia, 2000]
[Agustina, «Dostoievski e a Peste Emocional», em Contemplação Carinhosa da Angústia, 2000]
14.10.13
Deixei que ficasses
don't get me wrong oblivion
I never loved you kiddo
(…)
O I was too good to you oblivion old kid that’s all
and when I might have told you
to go ahead and croak yourselflike
you was always threatening you was
going to do
I didn’t
I said go on you inter-
est me
I let you hang around
[e.e. cummings: «don't get me wrong oblivion», Etcetera: Unpublished Poems, 1983]
I never loved you kiddo
(…)
O I was too good to you oblivion old kid that’s all
and when I might have told you
to go ahead and croak yourselflike
you was always threatening you was
going to do
I didn’t
I said go on you inter-
est me
I let you hang around
[e.e. cummings: «don't get me wrong oblivion», Etcetera: Unpublished Poems, 1983]
Idos de Março
Como os idos de Março, mas a meio de um outro mês; e acreditando na profecia; e com confiança em vez de cuidados.
13.10.13
A fórmula justa
Tenho aqui a Bíblia, e o Dante, e o Hölderlin, e o Baudelaire, e o Eliot, mas é numa simples canção que encontro a fórmula justa: «But if I had your faith / Then I could make it safe and clean / If only I was sure / That my head on the door was a dream».
Eu e o major
É óbvio que me identifico com «o major», embora neste momento seja «o narrador». O narrador e o major cruzam-se no comboio, no elevador, e talvez pudessem ser amigos, o major certamente gostaria disso, porque está sozinho e quer conversa; mas há demasiada distância entre ele e o narrador, demasiada história e biografia, mundividências diferentes, mundos diferentes. O major é socialmente sobranceiro, e bota-de-elástico, e um pouco lunático, como o major do Fawlty Towers. Não percebe as gerações mais novas, e nem sequer tenta. O narrador, que é das gerações mais novas, explica, com alguma empatia, que o major conheceu os hippies e os punks e assim por diante, e que portanto talvez tenha desistido de entender as novas tribos e as novas mentalidades. O narrador esquece-se de dizer que o major conheceu a guerra, e que isso lhe dá o direito de estar errado.
[Belle & Sebastian, «Me and the Major», álbum If You're Feeling Sinister, 1996]
[Belle & Sebastian, «Me and the Major», álbum If You're Feeling Sinister, 1996]
12.10.13
Leitura de perto
«That shape, that fairness, that sweet minor zest», escreve Keats, e tudo parece certo, a «forma», claro, porquê negar?, e uma «beleza» que também pode ser «justiça», e o entusiasmo talvez «menor» (quem sabe?), mas «doce» de incomum.
11.10.13
Metternich
He would not talk when these friends or classmates of hers were around, but he would try to catch her eye, so that he could indicate by a cold incredulous look what he thought of their conversation. Rose was flattered, but nervous. A girl named Nancy Falls, a friend of hers, mispronounced Metternich in front of him. He said to her later, “How can you be friends with people like that?”
[Alice Munro, conto «The Beggar Maid», 1977]
[Alice Munro, conto «The Beggar Maid», 1977]
Evangelhos
Oferecem-me as obras completas de Hölderlin, na edição Pléiade. Não há poeta de quem goste mais, que tenha sido mais importante, e a quem associe tanto a própria ideia de «poesia». Mas não leio Hölderlin há uns anos, por motivos bem compreensíveis. E sinto-me como um apóstata que tivesse recebido em mão os Evangelhos.
Meio do caminho
Não acreditar no que é falso é fraco consolo: eu não acredito no que é improvável, ainda que seja verdadeiro.
10.10.13
Beauty-in-the-ghost
Talvez escolha, precipitadamente, o poema de Hopkins com um verso beckettiano « (...) beauty-in-the-ghost, deliver it, early now, long before death», embora tudo isso me pareça duvidoso.
Um mundo antiquado
Gosto muito da dimensão «antiquada» dos contos de Alice Munro, ou antes, do mundo de Alice Munro, agora octogenária. É pelo facto de ela escrever sobre pequenas comunidades que a modernidade aparece como tão perturbadora. É por causa da repressão e do auto-exame das personagens que as emoções são tão turbulentas. É pelo ambiente de segredo que as ambiguidades e os indícios se fazem matéria ficcional. É a narratividade que justifica os hiatos e os narradores às vezes pouco confiáveis. E só um escritor «antiquado» podia demonstrar tão gloriosamente que a «epifania» de Joyce não envelheceu.
O conto
Deve haver quem proteste: como é que se atrevem a dar o Nobel a uma contista? A canadiana Margaret Atwood admitia, há uns anos: «Though her [Munro] fiction has been a regular feature of the New Yorker since the 1970s, her recent elevation to international literary sainthood took as long as it did partly because of the form in which she writes. She is a writer of stories - "short stories", as they used to be called, or "short fiction", which is now more common. Though many American and British and Canadian writers of the first rank have practised this form, there is still a widespread but false tendency to equate length with importance». O Nobel da Literatura dado a Alice Munro é, não apenas por isso mas também por isso, um grande acontecimento.
9.10.13
Ilusões perdidas
Encontro com assustadora frequência Eugène de Rastignac e Lucien de Rubempré. Ou antes: émulos deles, jovens leões oportunistas e janotas, lisboetas de empréstimo como os outros eram parisienses de aviário.
Félicien Marceau escreveu que certas personagens masculinas de Balzac apresentam características comuns: a negligência, a indiferença, a camaradagem, a sofreguidão hedonista, o desprezo face ao perigo, o impudor, a indiferença pelas vítimas (Balzac et son monde, 1970). Dois séculos depois, está tudo igual, nas virtudes como nos defeitos. Rastignac e Rubempré representam a «geração de 1830», que o romancista documentou estribado em casos conhecidos, boatos e invenções; mas representam todas as gerações, todos os arrivistas. Uns têm sucesso, outros nem por isso. Em Balzac, para cada dois Rastignacs, aparece um Rubempré.
Recordemos que Eugène de Rastignac lança, do alto do Père Lachaise, e dirigindo-se a Paris, o famosíssimo «À nous deux, maintenant!». Descendente da nobreza de província, mas sem fortuna, Rastignac decide triunfar na sociedade através dos meios óbvios: convívio com banqueiros, compadrios, casamentos estratégicos. O dinheiro torna-se a sua ambição, a sua carreira. Rastignac é mesquinho, preguiçoso, calculista, não acredita em nada e tem um coração seco, adequado ao princípio da realidade e hostil a fantasias românticas. Quando lhe dizem «on aime parce qu’on aime», ele responde: «Moi, j’aime par bien d’autres raisons. Elle est marquise d’Espard, elle est née Blamont-Chauvry, elle est à la mode, elle a de l’âme, elle a un pied aussi joli que celui de la duchesse de Berry, elle a peut-être cent milles francs de rentes». Diz-se que Balzac criou Rastignac a partir do historiador e estadista Thiers, mas trata-se de um Thiers dos medíocres. (...)
[da minha crónica da revista Ler deste mês]
Sobre o tu e o vós
O tu é castelhano e, por mais que eles a achem carinhosa, como lá dizem, é palavra muito de praça e que ao mais não deve de quebrar a menagem da câmara para fora. O vós é francês, que com um vu receberão a mesma rainha Sabá se cá tornara.
[D. Francisco Manuel de Melo]
[D. Francisco Manuel de Melo]
Se eu fosse a câmara
From the inside room when the front room greeting
Becomes your special book, it was simple then
When the party lulls, if we fall by the side
Will you be remembered, will she be remembered
Alone in a crowd, a bartered lantern borrowed
If I'm to be your camera, then who will be your face
I fell by your bed once, I didn't want to tell you
I should keep myself in between the pages
Of the green light room, if we fall by the side
Will you be remembered, will she be remembered
Alone in a crowd, a bartered lantern borrowed
If I'm to be your camera, then who will be your face
From the inside room when the front room greeting
Becomes your special book, it was simple then
When the party lulls, if we fall by the side
I still like you, can you remember
Alone in a crowd, a bartered lantern borrowed
If I'm to be your camera, then who will be your face
Alone in a crowd, a bartered lantern borrowed
If I'm to be your camera, then who will be your face
[«Camera», REM, álbum Reckoning, 1984]
Um vestido vermelho
«Um vestido vermelho restrito como um vocabulário poético», escreveu Agustina, e compreende-se: fica-se quase sem palavras, e o pouco que se diz é um tropeção de poesia.
8.10.13
Nobelkommitté
É possível que o Nobel da Literatura de 2013, que será entregue depois de amanhã, vá para um dos «nobelizáveis» do costume, autores que conheço mal como Kadare, Oz, Nooteboom ou Bei Dao; ou de quem não gosto especialmente, como Adonis e Murakami; ou que não faço ideia quem sejam. Quanto aos meus favoritos, escolheria este ano Alice Munro ou Javier Marías. E qualquer dos americanos estaria bem, a começar por Roth. Não acredito que dêem a medalha a Stoppard ou a Kundera, até pelas razões óbvias. Nem a Rushdie, porque quem tem cu tem medo. Mas Magris seria uma opção civilizadíssima. E gostaria de ver premiados autores menos óbvios mas muito impressionantes como o húngaro Péter Nádas ou o norueguês Kjell Askildsen. Dos poetas mais falados preferia, talvez por esta ordem: o senhor Robert Zimmerman, o polaco Zagajewski, o americano Ashbery, o francês Bonnefoy (apesar de ser um chato) e o coreano Ko Un, aquele sujeito que anda a escrever um poema sobre cada uma das pessoas que já conheceu.
7.10.13
Os impiedosos
Toda a vida os conheci, aos impiedosos, e testemunhei o seu desprezo pelos que têm menos capital genético ou social: os feios, os pobres, os boçais. Às vezes reencontro-os, aos impiedosos, e muitos deles agora estão desfigurados pelo tempo, têm os bens penhorados por dívidas, foram preteridos por gente mais sofisticada. E pedem piedade.
4.10.13
Da crueldade
De um ensaio de Adam Phillips: «We are humiliated (…) when we entrust ourselves (…) to people who don’t care for our well-being; people who need to render us helpless, people who need us to feel humiliated». Já escrevi bastantes vezes sobre essa tautologia da crueldade: somos humilhados porque há pessoas que precisam de nos humilhar, ou seja, a humilhação não é um acidente nosso mas uma necessidade de terceiros.
3.10.13
O que tu dizes
É quase como a regra psicanalítica: interessa-me o que tu dizes, não o que queres dizer.
2.10.13
Tirésias
Tirésias. (…) Naqueles tempos eu sentia nojo pelas coisas do sexo – parecia-me que o espírito, a santidade, o meu carácter seriam aviltados por ele. Quando vi as duas serpentes gozarem e morderem-se pelo musgo, não fui capaz de conter o meu despeito: toquei-lhes com o meu bordão. Pouco depois, eu era mulher – e durante anos o meu orgulho foi obrigado a sofrer. As coisas do mundo são rocha, Édipo.
Édipo. Mas é mesmo assim tão vil o sexo da mulher?
Tirésias. De maneira nenhuma. Não há coisas vis senão para os deuses. Há incómodos, desgostos e ilusões que ao tocarem a rocha se desfazem. Aqui a rocha foi a força do sexo, a sua ubiquidade e omnipresença sob todas as formas e transformações. (...)
Édipo. Vês então que um deus te ensinou alguma coisa?
Tirésias. Não há deus acima do sexo. É a rocha, digo-te eu. Muitos deuses são feras, mas a serpente é o mais antigo de todos os deuses. Quando se achata na terra, aí tens a imagem do sexo. Nele existem a vida e a morte. Qual deus pode encarnar e englobar tanto?
Édipo. Tu mesmo. Disseste-o tu.
Tirésias. Tirésias é velho e não é um deus. (...) O sexo é ambíguo e sempre equívoco. É uma metade que parece um todo. O homem chega a encarná-lo, a viver dentro dele como o bom nadador na água, mas entretanto envelheceu, tocou a rocha. (…)
Édipo. Rebater o que tu dizes não é fácil. Não é por acaso que a tua história começa com as serpentes. Mas também começas com o nojo, com o incómodo do sexo. E o que dirias a um homem válido que te jurasse ignorar o nojo?
Tirésias: Que não é um homem válido (…).
[Pavese, Diálogos com Leucó, 1947, em tradução de José Colaço Barreiros; fotograma da versão cinematográfica de Straub e Huillet, Dalla nube alla resistenza, 1979]
1.10.13
Teoria geral do blogue
John Ashbery explicou assim a sua poesia: quando as pessoas falam umas com as outras, a certa altura aborrecem-se; mas quando uma pessoa fala sozinha, toda a gente quer ouvir.
Eles
Eles beijaram a noiva.
Eles riram-se muito.
Eles vieram do espaço sideral.
Eles vieram de noite.
Eles chegaram à cidade.
Eles vieram destruir a América.
Eles vieram roubar Las Vegas.
Eles não conseguem amar.
Eles morreram calçados.
Eles abatem os cavalos.
Eles rebentam.
Eles protegem-me.
Eles voavam sozinhos.
Eles deram-lhe uma arma.
Eles tinham mesmo de casar.
Eles vivem. Eles amavam a vida.
Eles vivem de noite.
Eles guiam de noite.
Eles conhecem a Senhora Noite.
Eles eram dispensáveis.
Eles conheceram-se na Argentina.
Eles conheceram-se em Bombaim.
Eles conheceram-se no escuro.
Eles devem ser gigantes.
Eles fizeram de mim um fugitivo.
Eles fizeram de mim um criminoso.
Eles só matam os mestres.
Eles precisam da música.
Elas eram irmãs.
Eles ainda me chamam Bruce.
Eles não acreditam em mim.
Eles não se vão esquecer.
[«They knew what they wanted», de John Ashbery, versão PM;
no texto original, todos os versos citam títulos de filmes americanos]
Eles riram-se muito.
Eles vieram do espaço sideral.
Eles vieram de noite.
Eles chegaram à cidade.
Eles vieram destruir a América.
Eles vieram roubar Las Vegas.
Eles não conseguem amar.
Eles morreram calçados.
Eles abatem os cavalos.
Eles rebentam.
Eles protegem-me.
Eles voavam sozinhos.
Eles deram-lhe uma arma.
Eles tinham mesmo de casar.
Eles vivem. Eles amavam a vida.
Eles vivem de noite.
Eles guiam de noite.
Eles conhecem a Senhora Noite.
Eles eram dispensáveis.
Eles conheceram-se na Argentina.
Eles conheceram-se em Bombaim.
Eles conheceram-se no escuro.
Eles devem ser gigantes.
Eles fizeram de mim um fugitivo.
Eles fizeram de mim um criminoso.
Eles só matam os mestres.
Eles precisam da música.
Elas eram irmãs.
Eles ainda me chamam Bruce.
Eles não acreditam em mim.
Eles não se vão esquecer.
[«They knew what they wanted», de John Ashbery, versão PM;
no texto original, todos os versos citam títulos de filmes americanos]
«Eles»
Eles, eles, eles, eles. Quando dizemos «eles» muitas vezes parece que somos paranóicos. Mas não é por sermos paranóicos que eles deixam de vir atrás de nós.
1984
Some are like water, some are like the heat
Some are a melody and some are the beat
Sooner or later they all will be gone
why don't they stay young
[Wordsworth, perdão, Alphaville]