30.1.13

Um agradecimento

Parece o verso de Celan que diz «fala, mas não separes o não do sim», mas é antes isto: «não fales, porque isso separa o não do sim».

29.1.13

Uma cidade irrespirável

Lisboa acordou hoje envolta «num intenso odor a ovos podres ou lixo». Os especialistas explicam o mau-cheiro com a meteorologia, os resíduos das zonas industriais, a poluição, o vento estagnado. Não estou hoje em Lisboa, e ainda bem. É a minha cidade, e gosto muito dela, mas na última década, se tanto, o odor a lixo tornou-se irrespirável, simplesmente pelo facto de ser uma capital, viveiro de arrivistas e canalhas. Não vem na Greenpeace, vem no Stendhal.

28.1.13

Pemberley

Não direi, como Auden, que Jane Austen faz Joyce parecer um inocente, mas se ainda celebramos livros como Orgulho e Preconceito (publicado fez hoje duzentos anos) é porque o seu engenho prevalece sobre a sua candura. Elizabeth tem preconceitos acerca de Darcy porque as «primeiras impressões» (título original do romance) não são famosas. Mas a verdade é que as segundas impressões são bem diferentes, e não se devem apenas à mudança de atitude Darcy. Elizabeth é uma jovem semi-emancipada, sobretudo pela inteligência, a educação, o critério, mas em tempos de terra-tenentes é um facto universalmente conhecido que um homem solteiro procura uma noiva e que uma rapariga solteira procura Pemberley.

27.1.13

Noite branca

Generosa, ouve-me em confissão. E comenta: «Isso parece das Noites Brancas». Aliás, a própria Nastenka diz ao narrador que ele fala como se lesse de um livro.

26.1.13

Starlite walker

Imagino que o título do álbum Starlite Walker se refira à «starlite» inventada por Maurice Ward, um material capaz de resistir a temperaturas de mil graus; David Berman é poeta, e andar sobre mil graus é uma patente que merece alegoria.

25.1.13

Como é que uma coisa

(…) & she
said, «It's been evening all day long, evening
all day long & how can something so old be so
wrong». Sin and gravity drag me down to sleep
to dream of trains across
the sea, trains across the sea. Half hours on earth, what are
they worth (…)

24.1.13

Admiração

Um comportamento que não é deste tempo; há duzentos anos seria normal, típico de uma certa sensibilidade ou educação, de uma certa «classe», até. Hoje é uma bizarria, uma actuação tão desfasada e improvável que é difícil não lhe chamar patológica. Quando as pessoas lhe dedicam alguma «admiração», referem-se à admiração com que vêem uma autópsia.

23.1.13

Mau sangue

Um político japonês justificou algumas intervenções públicas infelizes com o seu grupo sanguíneo. Disse que era Rh negativo, como se fosse uma desculpa, e, segundo escrevem os jornais, isto para os japoneses fez algum sentido, porque muitos acreditam que o grupo sanguíneo determina o nosso comportamento. Eu próprio já tenho alegado mau sangue, mas nunca me serviu de nada.

22.1.13

Oshima e o radicalismo

Nagisa Oshima (1932-2013) disse que detestava o cinema japonês, todo o cinema japonês, que filmava contra o cinema japonês, contra o cinema considerado «japonês», contra uma ideia do Japão, conformista, imperialista, feudal. É fácil perceber o que queria dizer, sendo simpatizante dos jovens estudantes militantes, anarco-esquerdistas. Na verdade, um dos poucos filmes do «primeiro Oshima» que vi, A Cerimónia (1971), é magnificamente anti-Japão, sem no entanto conseguir ser «anti-japonês», de tal forma está preso aos rituais privados e públicos das suas muitas personagens. Depois, Oshima caiu na armadilha do «escândalo», lembro-me bem do fenómeno O Império dos Sentidos (1976), por ocasião da sua passagem na RTP e da pífia gritaria que gerou. A história verídica que o guião conta é fascinante, mas um filme sempre me pareceu entediante. Vi quatro os Oshimas posteriores, e três deles não são maus, embora com um erotismo um pouco programático, incluindo o homo-erotismo viril. Já o romance de Charlotte Rampling com um chimpanzé nunca poderia ser senão grotesco. Pelo que tenho lido, desconheço o Oshima que mais vale a pena, altura portanto ver os dvd's que tenho e nunca vi, em especial Contos Cruéis da Juventude e Noite e Nevoeiro no Japão. Talvez eles modifiquem a impressão que me causou o Oshima tardio, imbuído de um «radicalismo» que não me parece mais «radical» genuinamente que o suposto «conformismo» de Ozu, que Oshima atacou, embora não fosse digno de lhe apertar as correias das sandálias.

21.1.13

Tarefa

Os meus textos são acima de tudo uma tarefa. É penoso escrevê-los, uma alegria acabá-los, uma irrelevância vê-los publicados.

20.1.13

Hábito

Há uma canção que diz «sleep is the only love», e esse hábito ficou-me, mesmo agora que não preciso.

19.1.13

O tempo aos quarenta

Uma «ciclogénese explosiva», dizem os meteorologistas, vendaval à velocidade de cento e tantos quilómetros, bátegas de água que parecem pontapés contra as janelas, a casa treme como nunca tinha visto, vidros e portas não ficam quietos, e lá fora, ouço, foram derrubadas árvores, postes de iluminação, telhados. Há uns anos, detectaria apocalipses, sinais. Agora só me preocupam algerozes, frinchas, infiltrações.

18.1.13

A minha alegre casinha

Em minha alegre casinha, tão funesta quanto eu, quieto e conchegado, ocupado e contente, sem confianças abusivas, intrusões, diz-que-disse, calúnias, aleivosias, chinfrins, torrentes de inutilidade, «senate of bores and parliament of fools, / where gossip in her native empire rules». Antes este terceiro andar, a contar vindo do céu.

17.1.13

Vizinhas

(…) agora todas estas vizinhas experimentavam por ele um curioso sentimento, que, no fundo, as irritava um pouco e as fazia sorrir, às escondidas, especialmente quando o viam, atrapalhado ou acanhado, defender-se ainda e subtrair-se a pequenas e inocentes atenções que tinham com ele, visto saberem-no só e desamparado. Não havia, naquele sentimento, nem um vislumbre de desprezo. Estavam, pelo contrário, dispostas e reconhecer-lhe uma certa astúcia por ele ter demonstrado compreender o que de costume a amável estupidez dos homens não percebe: que o que elas dão e que para os homens é muito (…), para elas é menos que nada, é até o seu próprio prazer. Ora, não ter querido este prazer, para não o dar às mulheres, pagando-o como todos os homens o pagam, aos olhos delas afigurava.se, no fundo, como acção de pessoa muito esperta; e sentiam satisfação em mostrar-lhe que, apesar disso, estavam prontas a servi-lo alegremente, embora nunca tivessem obtido nada dele.

[Pirandello, «Pensão Vitalícia», 1915]

16.1.13

Venda

Se a Justiça decide tapar os olhos, a Sobrevivência está obrigada a tapá-los.

15.1.13

Que farei quando tudo arde?



Impressionou-me o vídeo de Reynold Reynolds e Patrick Jolley, que vi no MOMA. O quotidiano interessa-me e o fogo fascina-me, mas a ideia de um fogo que consome o quotidiano é um achado. Em Burn (2002), as vidas individuais são devoradas pelas chamas, mas as «personagens» continuam com os mesmos gestos e hesitações do costume, o fogo é como que um efeito especial que não os distrai dos seus dramas. É o fim do nosso mundo, e não o fim do mundo, que nos angustia. Deitando fogo à realidade, uma das «personagens» de Burn não destrói nada, apenas sublinha o ensimesmamento benéfico ou evitável dos humanos, que são já pó e cinzas, antes mesmo de qualquer fogo.

14.1.13

Puisque te v'là

«Puisque te v'là», como na canção do Brel, mas «bem mais tranquilo», digo, quase em voz alta. Enquanto em surdina vou pedindo «arrête de répéter qu'elle est plus belle qu'avant l'été», como se fosse possível pedir tanto.

13.1.13

Opção

Prefiro que me detestem pelas minhas certezas do que me estimem pelas minhas cobardias.

12.1.13

Wasted days

«I thought I would be more than this», diz Dylan Baldi. Eu digo o mesmo, rapaz, mas eu tenho o dobro da tua idade.

11.1.13

Frente a frente

Descubro, numa agenda, uma reconstituição dos factos, se é que houve «factos». E, confesso, o comportamento dela parece-me exemplar. Tocante, quase. In absentia, claro, outro galo cantou. Mas pelo menos não me enganei, e estava enganado quando disse que me enganei. Com os dados de que dispunha à altura, estava certo.

F., em contrapartida, nunca fez pouco de mim pelas costas, nunca quebrou a confidencialidade, nunca espalhou boatos. Frente a frente, bem entendido, praticava a agressão com uma naturalidade inquietante, como se não existisse convenção de Genebra; mas a coragem desagradável vale mais do que a grandeza entre aspas.

10.1.13

9.1.13

Casting

Querer que uma mulher seja parecida com outra mulher, uma mulher anterior, uma mulher imaginada, um arquétipo feminino. Idealizá-la como um espectador. Dirigi-la como um cineasta.

8.1.13

Cura

Ele quer curar-se para ficar com ela? Quer curar-se, mesmo que não fiquem juntos? Ou desistiria até da cura, se ficasse com ela?

7.1.13

O doente imaginário

Tal como o Jeff de A Janela Indiscreta, o Scottie de Vertigo está tolhido por uma incapacidade (uma perna partida num caso, acrofobia no outro), que imaginamos ser temporária, mas que o impede de exercer a profissão. Esse «impedimento», em ambos os casos, tem conotações sexuais, óbvias para Jeff, metafóricas para Scottie. E ninguém melhor do que um actor especialista em «homens comuns» para transmitir a ideia de que um homem comum é um homem doente.

6.1.13

O nome do meio

A Coit Tower chama-se assim porque foi construída com uma doação de uma senhora chamada Lillie Coit. Mais concretamente, Lillie Hitchcock Coit.

5.1.13

Souvenirs

«You shouldn't keep souvenirs of a killing», diz ele quando descobre que «ela» é, na verdade, ela mesmo.

4.1.13

Coit Tower

Não estava previsto, mas ela deixa-se seduzir, e acaba por regressar ao apartamento de Lombard Street. Lembrava-se da casa, explica, porque ficava perto da torre. Uma enorme torre de betão armado, chamada, palavra de honra, Coit Tower. «Well, it's the first time I ever had to thank the Coit Tower», diz ele, tão obsceno que é quase púdico.

3.1.13

The second time that I followed you home

2.1.13

Gosto em homens

Uma diz à outra: «Já tinha reparado que o teu gosto em matéria de homens é mais ibseniano do que tchekhoviano». A outra responde, divertida: «Ah, Minnie, what a beast».

[The Shooting Party (1980), de Isabel Colegate]

1.1.13

Da monarquia



É uma atitude, digamos, monárquica. Para mim, aconteça o que acontecer, certas meninas dizem sempre a coisa acertada, intervêm sempre a propósito, decidem sempre com sensatez, demonstram sempre um gosto impecável, comportam-se sempre com decência, sofrem sempre com dignidade, produzem sempre afirmações interessantes, têm sempre defeitos desculpáveis, usam sempre um código que só eu conheço, e mantêm a pele, esplêndida, dos vintes.