27.4.14

Poesia

Não ias publicar um novo livro de poemas?, perguntam-me de manhã. Ia, mas não vou, não acredito na poesia, respondi, intratável. E à noite descobri um poema que começa assim: «Intratável. / Não quero mais pôr poemas no papel / nem dar a conhecer minha ternura». Não quero mais.

23.4.14

Uma receita



I showed my heart to the doctor, he said I'd just have to quit
Then he wrote himself a prescription
Your name was mentioned in it

Correcções

Porque a realidade é um corrector automático: mal acabamos de escrever uma frase que achámos verdadeira e logo as palavras ficam sublinhadas a vermelho com tantos erros cometidos.

Um pedido

No último romance de Gabo encontrou a definição justa: «sem a urgência do desejo ou o estorvo do pudor». É verdade que ainda não conseguia evitar por completo o pudor nem o desejo; mas ela pediu-lhe gentilmente que dispensasse o estorvo e a urgência.

21.4.14

O bem

Dias em que se fica o tempo todo à espera; não à espera dela, como noutra época, mas à espera do bem dela.

33












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19.4.14

Equilibrismo

Avançámos com risco e segurança, como um equilibrista sobre uma rede.

18.4.14

Instantâneo

















«(...) you only needed to shoot half a roll of film and then you had it» (o fotógrafo David Bailey sobre Jean Shrimpton, sua modelo e namorada).

17.4.14

Incomparável

De todos os métodos filosóficos, a comparação é o mais fidedigno. Comparar gestos, atitudes, comparar a viabilidade e o benefício, a linguagem e a coerência. Há quem diga que é impossível comparar, que uma situação é sempre incomparável. Parece-me uma subtileza que esconde uma cobardia.

Espadas



E o homem que engole espadas diz: «Here is your throat back / thanks for the loan», com o seu habitual despeito atencioso.

Tempo

Bem sei, o tempo é «subjectivo». Mas essa ideia, útil e verdadeira, pode tornar-se o começo de uma ilusão. Porque há quem evite a todo o custo o confronto com o tempo objectivo, mensurável, o tempo dos actos, o tempo que faz prova.

13.4.14

Divisão da alegria



Grandíssimo concerto de Peter Hook, que não tem voz nenhuma mas tem a força de um catálogo e de uma entrega: mais de 3 horas, nomeadamente com as integrais de Unknown Pleasures (1979) e Closer (1980), discos tão importantes para mim que quebrei emocionalmente duas ou três vezes, sobretudo naquelas canções em que a veemência e pungência das guitarras se reúnem em torno de perguntas-queixume, perguntas-desespero, o «where will it end» de «Day of the Lords», o «where have they been?» de «Decades» (um dos grandes momentos da noite, juntamente com «Interzone»), perguntas que em dias de cão fiz tantas vezes. Noutros casos, em vez de perguntas há declarações-rendições, o efeito é o mesmo: «I’ve got the spirit, lose the feeling», «I feel it closing in», «me, seing me this time, hoping for something else». E tivemos também a beleza catastrófica de «Love Will Tear Us Apart», a elegia devastada mas resignada de «Atmosphere», a euforia malsã de «Transmission» ou o pânico maníaco-depressivo de «She's Lost Control». Tudo pulsante, vibrante, zangado, destroçado, sem a voz de Ian mas com o baixo tão baixo de Hooky, que nos assombrou no Armazém F, trinta e cinco anos depois.

12.4.14

Evidência

Philip Roth usa uma fórmula que diz tudo, com enorme exactidão material e filosófica: «the simplicity of physical splendor». Trata-se de uma evidência: visível, gloriosa, imediata. Confunde-se isto com «o amor»? Talvez aconteça. Mas quem chama a isso uma «confusão» também está um pouco confuso.

Brancusi

Claudia Roth Pierpont, autora de um recente estudo biográfico sobre o seu homónimo Philip Roth, apresenta assim o objecto de desejo de um dos romances: «And it began no differently with this girl, who displayed any number of attractive qualities: a smoothly polished Brancusi forehead, a reverential attitude toward culture, perfect posture (...) and (...) oddly formal manners (...)». E é tudo o que estou disposto a contar em matéria confessional.

11.4.14

Privilégio

Ela disse: «aqueles que não merecem têm um lugar privilegiado na tua memória», mas eu não me vou esquecer de que ela me disse isto, nem do privilégio que me deu.

8.4.14

Confiança

Ainda da Carta aos Coríntios: «Agora, pois, permanecem a fé, a esperança, o amor, estes três; mas o maior destes é o amor». Eu disse-lhe: «Mas o maior destes é a confiança». E ela sabia que era um sinónimo.

Como coisa sua

Na Carta aos Coríntios, esta passagem: «Destruirei a sabedoria dos sábios, e aniquilarei a inteligência dos inteligentes». Porque os sábios e os inteligentes tratam a sabedoria e a inteligência como coisa sua, coisa que possuem, que os distingue, e que portanto lhes sustenta a arrogância e o desprezo. Mas se são coisas que eles possuem, tire-se aos inteligentes a sua inteligência, e roube-se aos sábios a sabedoria, de modo a que fiquem sem nada, e aprendam na humildade.

A leitora (2)


A leitora (1)

Ainda hoje, em alojamentos de quarto e pequeno-almoço ou hotéis de beira-mar, uma estante cheia de livros esquecidos fazia as delícias de Madeleine. Passava-lhes os dedos pelas capas salpicadas de água salgada. Separava folhas que o ar do mar tornara peganhentas. Não sentia qualquer atracção por livros de mistério nem policiais de bolso. Era a encadernação abandonada, a edição de 1931, já sem capas, de um livro da Dial Press, cheia de marcas de chávenas de café, que trespassava o coração de Madeleine. Os amigos podiam chamá-la da praia, a grelhada de peixe podia estar pronta, que Madeleine sentava-se na cama e lia um bocadinho para que o livro triste se sentisse melhor (…) / E no entanto havia alturas em que a preocupava o efeito que aqueles livros velhos e bolorentos estavam a ter sobre ela.

[Jeffrey Eugenides, O Enredo Conjugal (2011), tradução de Francisco Agarez]

Vê o que é que achas disto

7.4.14

Efeito

Incapaz de agir sobre o facto que a fotografia captou, ou então de apagar a fotografia, pôs-se, maníaco, a alterar os filtros, como se os fundos ou as transparências tivessem um efeito sobre a realidade.

Parte da história

O famoso poema de Drummond sobre os desencontros amorosos tem um elemento expectável e outro inesperado. Relembremos o texto integral: «João amava Teresa que amava Raimundo / que amava Maria que amava / Joaquim que amava Lili / que não amava ninguém. / João foi para os Estados Unidos, / Teresa para o convento, / Raimundo morreu de desastre, / Maria ficou para tia, / Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes / que não tinha entrado na história». Pois bem, A amar B, quando B ama C, é uma fatalidade normal. Exílios, suicídios ou solidões são coisa banal, e até ainda há quem entre no convento. A força supostamente «cómica» do poema está nos versos «que não amava ninguém» e «que não tinha entrado na história». Porque Lili, ao «não amar ninguém», quebra violentamente a quadrilha, a dança de roda, põe-se aparentemente fora do jogo. Sendo que, «não amando ninguém», ela casou-se, é a única mulher da quadrilha que sabemos que se casou, embora não amasse ninguém. E casou logo com um senhor com uma inicial à empresa comercial, um J. Pinto Fernandes, talvez primo de J. Alfred Prufrock, e que assim apresentado, com o J. e os apelidos, não gera grande empatia. A comicidade de J. Pinto Fernandes está no facto de ele «não ter entrado na história», e de a história, a história do poema «Quadrilha», acabar com o verso «que não tinha entrado na história». Não sabemos se J. Pinto Fernandes chegou a ser amado por Lili, se foram felizes, sabemos que casou com ela, talvez por se chamar J. Pinto Fernandes, talvez porque «não tinha entrado na história», porque há uma certo alívio em não entrar nesta história, embora não o trocássemos pela tristeza boa de a ela pertencermos.

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6.4.14

Picasso e Matisse

Picasso had to labour for innocence, however, whereas for Matisse it was like breathing.

[uma explicação de Simon Schama, no FT]

Intérpretes

Precisávamos ambos de intérpretes, mas de intérpretes especiais; porque nós entendíamos as subtilezas um do outro, mas nunca percebíamos o óbvio.

4.4.14

Incapacidade

Claro que a lucidez é incapacitante. Mas a incapacidade também é.

3.4.14

Guilherme de Aquitânia

Guilherme de Aquitânia, em provençal: «D’amor non dei dire mas be. / Quar non ai ni petit ni re? / Quar ben leu plus non m’en cove»; na versão de Arnaldo Saraiva: «De amor não direi senão bem. / Porque nada dele me vem? / Porque mais não me convém». É impossível dizer isto de forma mais exacta. Não é pelos nossos amores de cada qual que devemos avaliar «o amor», sobretudo se não o confundimos com tantas outras afeições parecidas. Podemos acreditar no amor como os comunistas acreditam no comunismo: nenhum fracasso mostra a sua insuficiência, inviabilidade ou maldade. «De amor não direi senão bem», é bem verdade, e sou até, com todos os paradoxos que queiram ou imaginem, um homem com alguma sorte, porque escapei quase sempre à infâmia. Dele nada me vem? Tem sido verdade em certos casos, mas não é verdade sempre, não é verdade em abstracto, posso mesmo dizer que nunca tive nenhum bem digno desse nome que não viesse com o amor, ainda que frágil ou fugaz. Quanto ao «porque mais não me convém», cada vez mais me convenço que cada um tem o que merece e aquilo que secretamente quer, ou então faria de modo diferente o que fez sempre da mesma maneira. Estou com Guilherme de Aquitânia, nascido em 1071 e falecido em 1126.

2.4.14

Opus cinco



Equatorial, do brasileiro Fabiano Calixto, é o quinto título da colecção de poesia da Tinta-da-china.

1.4.14

Em paz

Num dos seus volumes de autobiografia, Thomas Bernhard, observando o menosprezo com que enfermeiras e médicos tratavam um doente que defendia concepções políticas que eles detestavam, escreve: «Aí tive eu um exemplo para a circunstância de aquele que é honesto e segue as suas ideias de modo consequente e perseverante, mas ao mesmo tempo deixa em paz os que têm uma opinião diferente, se ver confrontado com o desprezo e o ódio, de se proceder para com uma pessoa assim apenas com a intenção de a aniquilar». A honestidade, a divergência e o ódio são fenómenos conhecidos, mas Bernhard sublinha um facto importante: deixar em paz os que têm uma opinião diferente também é uma atitude socialmente condenada.