27.2.13

O jardineiro dos Habsburgos

Toda a gente censura a «acepção de classes» como se se tratasse de um coisa que acontece aos outros. Eu sei perfeitamente que não gosto de certas coisas por questões classistas (gestos, palavras, atitudes), e sei que desagrado certas pessoas por igual motivo. Umas são de classes «mais altas» e outras de classes «mais baixas». Tento não exteriorizar o meu classismo, mas muitas vezes não consigo. Como também não consigo fingir que não percebo quando me tratam com azedume, como se eu fosse um Habsburgo, ou com desdém, como se eu fosse o jardineiro.

26.2.13

Lá como cá

Entrar no céu para ser tão desesperado lá como cá, dizia Kafka.

21.2.13

Altura desconhecida



Then jumping from an unknown height
She merges with the liquid night.

[«Decadence», do álbum Bananamour (1973), a «canção sobre Nico» de Kevin Ayers (1944-2013)]

14.2.13

Strung out on semantics, Holiday-Inn vigilantes



[e o que é eles censuram é, imaginem, «cocaine», como se tudo o resto não fosse vício]

10.2.13

ATRAVÉS DA ÁGUA

Lago negro, barco negro, duas figuras negras recortadas.
Para onde vão as árvores negras que bebem aqui?
As suas sombras invadem o Canadá.

Uma pequenina luz atravessa as flores de água.
As folhas não querem que tenhamos pressa:
são redondas e rasas e cheias de conselhos sombrios.

Tremem nos remos mundos frios. 
O espírito da escuridão está connosco, está nos peixes.
Um ramo na corrente levanta, em despedida, a mão pálida;

as estrelas estão abertas entre os lírios.
Não ficas cega com estas sereias sem expressão?
Este é o silêncio das almas estarrecidas.

[«Crossing the Water», de Sylvia Plath, versão PM]

8.2.13

Remédios

















«Conta-se que Xerxes, contemplando um dia o seu imenso exército, chorou com a idéia de que, ao cabo de um século, toda aquela gente estaria morta. Também eu contemplo, e choro, por efeito de igual idéia; o exército é que é outro. Não são os homens que me levam à melancolia persa, mas os remédios que os curam. Mirando os remédios vivos e eficazes, faço esta pergunta a mim mesmo: Por que é que os remédios morrem?»

[de uma crónica de Machado de Assis]

7.2.13

Um risco

Percebo que certos jogos tenham regras complicadas de entender, mas não me venham dizer que esta regra é difícil: há um risco no chão, e quem pisar o risco, perde.

6.2.13

Idade do gelo
















É a «Balfourian manner», a timidez, a reserva, a prudência, o distanciamento, o «nothing matters very much and few things matter at all». O que disseram de Balfour, podem dizer de mim: «ele acreditava que tinha havido uma idade do gelo, e que vai haver outra».

5.2.13

Lose-lose

É como dizia o dominicano Herbert McCabe, referindo-se ao cristianismo: «se não amas, estás morto; se amas, matam-te»

4.2.13

Um marido

Inteligente, estudiosa, quis elevar-se socialmente, distinguir-se, vingar-se, tudo motivos compreensíveis e frágeis; lembro-me de a ver enfim com um marido, abrutalhado, guarda-fiscal ou coisa do género. Tinha fracassado mas regressara com um homem pelo braço, fazia pena aquele triunfo tão coberto de vergonha.

3.2.13

Demasiado tarde



E um ladrão que viu aquilo, contrito, tentou subir à cruz, para sofrer o mesmo destino, mas Jesus disse-lhe: «é demasiado tarde». 

[«The Thief», dos Can, numa bela versão dos Radiohead]

2.2.13

Bonus pater familiae

Achava esse homem inaceitável, este interessante, aquele uma incógnita, como se fosse pai dela.

1.2.13

Comboio

«Este comboio circula com um atraso de vinte minutos», avisa uma voz. E depois diz que a companhia «agradece» a nossa «compreensão». Por mim tudo bem, não tenho pressa, mas gostava de saber o modo temporal daquele «agradece». A voz dá por garantida a nossa «compreensão» e agradece-a ex post facto? Ou agradece antecipadamente, e espera ter a nossa compreensão? A suposição mantém-se, mas em civilizado. E o atraso, de qualquer modo, é o mesmo.