23.10.13

Ha

É quase impossível não gostar de um filme dirigido por Noah Baumbach, meu quase coetâneo de 1969, interpretado por Greta Gerwig, e escrito por ambos, que ainda por cima, agora, são um casal. Não conheço a sua segunda e terceira longas, que nunca passaram por cá, mas o «opus 3», Kicking and Screaming (1995) é uma história de coming of age entre jovenzinhos bem apessoados, bem lidos, entediados e bloqueados que faria inveja a Fitzgerald, e que, nos dias de hoje, só poderia ser filmada por um Whit Stillman. Depois veio A Lula e a Baleia (2005) e saí da sala combalido, «eu conheço isto, eu compreendo isto, eu queria ter feito isto, eu quero ser amigo desta pessoa». Pouco me importa, enquanto espectador, o contexto especificamente nova-iorquino, as indiscrições biográficas, os pais famosos (romancista, crítica de cinema), isso é tudo biografia: para mim A Lula e a Baleia é sobre a família como força insubstituível e insuportável, sabotadora e estranhamente reconfortante, porque previsível, mesmo quando enfurecedora. E gosto da maturidade triste das crianças e das infantilidade quase risível dos adultos, e das metáforas óbvias e poderosas, e da cultura como acessório, maldição e idioma para as nossas emoções e traumas. Margot e o Casamento (2007) e Greenberg (2010) eram, cada um à sua maneira, mais previsíveis no desenho de um colapso da meia-idade, mas as cenas imprevisíveis, inacabadas, absurdas, davam uma pungência pouco vista em Nicole Kidman e nunca vista em Ben Stiller. E o recente Frances Ha (2012)? É um filme que nos desarma, sem ser nunca uma obra notável. Baumbach, que se tinha divorciado de Jennifer Jason Leigh, queria fazer um filme de «divorciado», o que significa tantas vezes um reencontro com a vida, com a alegria, os imprevistos, até as parvoíces. Sendo Greta Gerwig a sua parceira profissional e pessoal, teve espaço para improvisar, quer dizer, repetir até parecer improviso, certas cenas e situações, verossímeis e estapafúrdias. Filmou a preto-e-branco, com uma sequência narrativa um pouco desconexa, homenageando tanto a Nouvelle Vague (sem a literatura) como o movimento americano do «mumblecore» (sem a afasia). Ainda que fala de gente que vive «da mão para a boca», à deriva mas não na pobreza, porque os baumbachianos são sempre elitistas da Costa Leste, que se referem displicentemente a Gainsbourg e Thoreau. Greta Gerwig, sem ser de uma beleza cinematográfica convencional, é adorável, desajeitada, brincalhona, dada a impulsos, piadas secas, tristezas que passam logo, euforias precárias, e os mais atentos conhecem-na há quase uma década como rainha indie (em Hannah Takes the Stairs, 2007; Damsels in Distress, 2011; Para Roma com Amor, 2012; ou Lola Versus, 2012). Mas esta sua Frances Halladay, «parisiense» sem glamour, Woody-allenesca sem divã austríaco, é uma mulher à procura de uma personagem. Tem 27 anos, é vagamente «complicada» (mas não muito), e brincam dizendo que é «undatable». Mas o que vemos é um coração puro e um corpo irrequieto, que não encontra o lugar certo na vida porque o dinheiro não é muito e porque os seus amigos não valem nada. A «melhor amiga» é das personagens mais insípidas e interesseiras dos últimos anos, e um possível namorado, aquele estranhíssimo indivíduo meio bruto meio autista que Lena Dunham descobriu na série Girls (chama-se Adam Driver), tem muito pouco que fazer. Salva-se a câmara móvel, a atravessar as ruas e os apartamentos de festas mortiças, as canções anglófonas e as chansons, o júbilo de começar de novo mesmo quando as coisas não prometem grande coisa, e salva-se o eixo Cidade Luz-Big Apple, parodiado numa cena espantosa com soníferos e uma viagem idílica e infrutífera. Há uma razão para que o apelido de Frances, «Halladay«, seja abreviado para «Ha», mas de facto funciona quase como uma sinopse, ou antes, uma carta de intenções. Um filme dirigido por Baumbach, interpretado por Gerwig, e escrito pelos dois, não podia ser mau. Mas esta é talvez apenas um interlúdio, vivido, gracioso, terno, que passa num sopro, e que tem o sopro de uma carta de amor.