1993 foi um bom ano para mim. Quase toda a gente que me conheceu em 93 contestaria esta afirmação com veemência, mas a verdade é que todos os anos em que se aprende são anos bons. E eu aprendi imenso em 93. Uma decepção generalizada aos vinte anos faz mais bem do que mal. Em 93 e nos anos seguintes, um dos discos que eu ouvia compulsiva, maníaca e patologicamente era
Laid, dos James. Tenho quase uma história diferente sobre cada um dos temas, o que significaram para mim, a esperança e o desconsolo que deles retive, as fantasias comovidas e cruas. É tudo matéria antiga, morta, em quase tudo excepto nas canções elas-mesmas, que quase nunca deixaram de me acompanhar. Uma delas, chamada «Dream Thrum» (qualquer coisa como «sonho monótono» ou «monotonia sonhada») sempre me perturbou bastante, mas durante anos não soube ao certo porquê. O «she» e o «you» da canção eram óbvios, ela que imaginava coisas na sua cabeça que na verdade não existiam quando acordava, um «you» que era um «ele», ou seja, um «eu» transposto, acusatório. O que eu não entendia bem na canção era o «we», o «nós» a quem eram atribuídos poderes quase demiúrgicos, cruéis e vetero-testamentários. «She» aparecia apenas numa estrofe, e depois saía de cenas usando «pedras preciosas» para fazer as vezes dos olhos dele, meio vudu, meio ex-voto, como no verso que Eliot tirou de
A Tempestade: «essas são as perólas que eram os olhos dele». Terminado o papel de «she», não aparecia o «you» mas o «we», esse «nós» é que determinava o «tu» (ou seja: o «eu»). Nós cortamos o cordão umbilical, ou a corda que te ajudou, nós deixámos-te sozinho, nós enchemos a tua cabeça com ideias loucas, nós enganámos-te com as nossas crenças, nós deixámos um trilho que se apaga para deixar vivas as tuas esperanças, nós mostramos-te esta superfície que parece calma mas que não é nada disso, nós fizemos que sentisses que estavas errado, que estavas mal, nós fizemos-te aquilo que és, fizemos-te medroso. E se não jogares o jogo nós faremos com que mudes. Quem é este «nós»? São os «deuses», a «sociedade», uma qualquer versão conspirativa dos «outros», aqueles que, diz o filósofo, são «o inferno»? Não sabia, e demorei mais de uma década a saber quem era esse «we», e porque é que o «we» fazia essas façanhas de que se ufanava, arrogando-se o direito de tornar «she» e «you» uns pobres títeres da ordem estabelecida. Quando descobri quem era «we», não me lembrei de «Dream Thrum», que andou esquecida durante uns tempos. Quando reencontrei a canção, percebi o sentido que isso fazia, que fazia para mim, claro, não para Tim Booth, não presumo ter encontrado uma «interpretação autêntica», apenas uma que se adequa certeiramente à minha vida. Sem eu sequer saber quem era «we», segui todos os passos que me estavam destinados, o cordão, a corda, as ideias que enganam, os trilhos apagados, a superfície enganadora, o medo por contágio. Dizem que as canções são apenas canções, mas a minha biografia está contada em doze versos de uma canção, menos do que um soneto. Não que eu menospreze a autonomia do «she» e do «you», que afinal se apresentam como os actores principais; mas são actores que representam numa cenário cheio de gente, gente aliás com mais vontade de ser coro do que personagem. Tive notícias (e ainda tenho, ainda agora) de que eles («we») se divertiram e divertem, nada como um títere cujas desgraças patéticas em parte patrocinam, um títere que deu certo. Pois até as frases que noutras bocas seriam por bem eles dizem por mal, como quem indica um bosque e omite as emboscadas. Mais de vinte anos depois, regresso à canção, e tudo faz sentido, faz finalmente sentido, o velho triunfo, gregário e jocoso, dos fortes sobre os fracos, ainda que instrumentalizando terceiros. «We» é a categoria empírica e quase imperial, «she» a categoria acidental, «you» a matéria excrementícia. Compreendo. E chego à boca de cena para vos reconhecer, vos louvar, para vos oferecer o pescoço. Mas a vossa ameaça, «se não jogas o nosso jogo, faremos com que mudes», a essa ameaça o «you» não cede. Quando ele diz uma e outra vez «oh, eu mudei», não está a abdicar, não se está a querer convencer de nada, nem está a abjurar ficticiamente, à Galileu; está a dizer que mudou
por causa do jogo, é verdade que mudou, mas não mudou no sentido das regras do jogo, mas no sentido inverso, o sentido de quem conhece o jogo onde a esperança dá lugar ao medo, e abandona a esperança e depois o medo, até não haver jogo. Vinte anos depois compreendo, compreendo-vos, felicito-vos, e despeço-me de vós, vencedores. Estas são as pérolas que eram os meus olhos.