Pequena ponte
Nas arrumações, dou com o Nietzsche quase todo numa última prateleira, a mais alta, como se fosse um autor proibido, que perigoso é de certeza. Abro A Gaia Ciência e leio uma passagem que aconselha: evite-se o «sentimento delicado ou entusiástico ou sublime», que é um afecto que desvenda os segredos, e portanto perturba as pessoas, e pratiquemos o «sarcasmo frio, mas espirituoso», uma forma mais inócua e interessante de convívio. Fez-me impressão, e ainda mais o que Nietzsche escreve a seguir: «Fomos outrora tão próximos um do outro (…) [que] entre nós apenas existia uma pequena ponte. Estavas a ponto de a atravessar quando eu te perguntei: "Ainda queres passar a ponte para te juntares a mim?"». «Mas agora tu já não querias», prossegue o texto, que nos diz que, de tudo aquilo, ficou apenas a separação intransponível e o fantasma de uma pequena ponte que nenhum deles há-de esquecer. Fechei A Gaia Ciência e devolvi-a à prateleira mais inacessível.