5.2.14

Falta

Pessoas que fizeram parte da nossa vida durante décadas desaparecem e na verdade não lhes sentimos a falta, reparamos nisso quando reparamos que nunca reparámos nisso, é um pouco indecente confessá-lo mas é assim, não deixaram marca, mesmo que tivessem sido amáveis ou amigas, as coisas são o que são. E outras pessoas, raras, duas por década se tanto, pessoas que mal conhecíamos, com quem nos cruzámos ou com quem convivemos por uns dias apenas, essas fazem-nos uma falta tremenda, uma falta como a de uma substância química a que o organismo se habituou, às vezes nem é tanto o que elas são ou foram, que mal soubemos ou adivinhámos, mas pequenos gestos, suspensões na voz, interjeições favoritas, tiques de linguagem que se tinham tornado um jogo privado, medos confessados a conta-gotas, mensagens cifradas como cartas para descodificarmos muito depois, ambiguidades desastradas ou cuidadosas, gargalhadas inconvenientes e fantásticas, omissões por bem, certa forma de nos chamarem quando nos afastamos, um jeito de se afastarem quando chegamos demasiado perto, clichés encantadores, frases de efeito, palavras balbuciadas, bocados contrabandeados de biografia para não parecer que são biografia, entusiasmos de outros tempos, zangas que passam logo, branduras quase irreais, espanto e pânico à primeira vista indetectáveis, e uma impossibilidade última de existirem na nossa vida senão fazendo-nos falta, mulheres que mal tocámos e que afinal faziam parte do nosso corpo, e que agora talvez pensem de quando em vez nesse nosso corpo amputado e triste e grato por nos termos conhecido, e talvez pensem o mesmo de nós, ou talvez se tenham esquecido, ou talvez se esqueçam em breve.