29.7.14
Mal saiu o Lei Seca, ofereci-lhe um exemplar autografado, ou antes, dedicado. O livro tem páginas e páginas sobre ela, tudo o que há de luminoso no livro vem dela. E embora não nos víssemos há muito tempo, foi como se nos tivéssemos encontrado na véspera. Recebeu o livro como é seu costume: com a melancolia educada de quem recorda, sem nenhum espalhafato, experiências comuns, conversas noite dentro, graças que só os dois entendemos, agora tem a tranquilidade que à época tinha perdido, mas os mesmos olhos verdes magoados e vivos, que afasta por uns segundos enquanto acondiciona o livro como se fosse contrabando.
Contravida
(...) O manuscrito chamado «Os Factos» tornou-se então uma terapia e uma arqueologia biográfica. Na introdução, Roth confessa que quis mostrar que é de facto um «escritor autobiográfico», mas não o tipo de escritor autobiográfico que os outros dizem que ele é. Para esse efeito, tentou recuperar, inalterados, certos «momentos originais», sem disfarces nem mentiras ficcionais, ainda que estivesse bem consciente de que todos os «factos» são uma imaginação daquilo que realmente aconteceu. Tentou fazer «jogo limpo», sentir de novo as emoções que o levaram à escrita, e apenas alterou alguns nomes, para proteger as pessoas mencionadas.
No entanto, teve, ou disse que teve, bastantes dúvidas sobre toda aquela exposição pessoal. (...) E escreve a uma das suas personagens, Zuckerman. Pergunta-lhe se deve publicar o livro E pede: «Sê franco».
(...) Zuckerman responde. É esta refutação que faz de «Os Factos» uma autobiografia genial. Porque Zuckerman é uma personagem, um alter-ego, e defende a ficção contra a não-ficção. «Se eu fosse tu (o que não é impossível) (…)», diz, a certa altura; se eu fosse a ti, afirma, desistia desse projecto. É sem dúvida muito interessante escrever sobre a vida, e sobre como escrever sobre a vida, e tudo isso. Mas, garante Zuckerman, Roth precisa da imaginação, da dramatização, da manipulação. É no romance que ele é brilhante, complexo, memorável. Na autobiografia, nem por isso. «És o menos conseguido dos teus personagens». Porque ao escrever «os factos», diz a criatura ao criador, o artista cai nas armadilhas da «franqueza» e da fraqueza. Idealiza o passado, procura a reconciliação, tem bons sentimentos, faz-se mesmo passar por «boa pessoa». O que contrasta de forma chocante com um Philip Roth que se notabilizou por causa da raiva, da lascívia, da bílis. A autobiografia não-ficcional domestica-o, gera inibições, autocensuras, defesas, incluindo aquela defesa que é pedir, por descargo de consciência, a opinião de uma personagem.
Zuckerman diz a Roth que a autobiografia é um contra-texto, uma «contravida». Um texto contra os romances, claro, mas também contra a vida, contra a veracidade crua da vida e dos factos. Porque «os factos? são «mais obstinados, incontroláveis e inconclusivos» do que Roth quer que acreditemos. Por isso, Zuckerman aconselha: «Não publiques».
[a minha última coluna antes das férias no Expresso diário]
No entanto, teve, ou disse que teve, bastantes dúvidas sobre toda aquela exposição pessoal. (...) E escreve a uma das suas personagens, Zuckerman. Pergunta-lhe se deve publicar o livro E pede: «Sê franco».
(...) Zuckerman responde. É esta refutação que faz de «Os Factos» uma autobiografia genial. Porque Zuckerman é uma personagem, um alter-ego, e defende a ficção contra a não-ficção. «Se eu fosse tu (o que não é impossível) (…)», diz, a certa altura; se eu fosse a ti, afirma, desistia desse projecto. É sem dúvida muito interessante escrever sobre a vida, e sobre como escrever sobre a vida, e tudo isso. Mas, garante Zuckerman, Roth precisa da imaginação, da dramatização, da manipulação. É no romance que ele é brilhante, complexo, memorável. Na autobiografia, nem por isso. «És o menos conseguido dos teus personagens». Porque ao escrever «os factos», diz a criatura ao criador, o artista cai nas armadilhas da «franqueza» e da fraqueza. Idealiza o passado, procura a reconciliação, tem bons sentimentos, faz-se mesmo passar por «boa pessoa». O que contrasta de forma chocante com um Philip Roth que se notabilizou por causa da raiva, da lascívia, da bílis. A autobiografia não-ficcional domestica-o, gera inibições, autocensuras, defesas, incluindo aquela defesa que é pedir, por descargo de consciência, a opinião de uma personagem.
Zuckerman diz a Roth que a autobiografia é um contra-texto, uma «contravida». Um texto contra os romances, claro, mas também contra a vida, contra a veracidade crua da vida e dos factos. Porque «os factos? são «mais obstinados, incontroláveis e inconclusivos» do que Roth quer que acreditemos. Por isso, Zuckerman aconselha: «Não publiques».
[a minha última coluna antes das férias no Expresso diário]
Uma ideia
Espinosa não disse que o amor é a alegria acompanhada de
uma causa exterior: disse que «o amor é a alegria acompanhada da ideia de uma
causa exterior». Que o amor seja uma manifestação da alegria é evidente; que
dependa de uma causa, percebe-se; mas o luso-holandês acrescentou essa
magnífica subtileza: a ideia de uma causa. Além de uma «emoção», o amor é uma «ideia»: uma ideia sobre a causa do amor, justamente. Por isso é que experimentamos tantas discrepâncias e decepções: porque a
alegria é uma emoção, e não está sujeita às regras da veracidade;
ao passo que o amor é uma ideia, e, como todas as ideias, é muitas vezes uma falsidade.
Nunca mais
B: The happiest time? (…) This must be the happiest time: half of being adult done, the rest ahead of me. Old enough to be a little wise, past being really dumb… (…) Enough shit gone through to have a sense of the shit that’s ahead (…). What I like most about being where I am is that there’s a lot I don’t have to go through anymore (…).
[Edward Albee, Three Tall Women, 1994]
[Edward Albee, Three Tall Women, 1994]
28.7.14
Buñuel e o papelinho
Buñuel tinha visto tanto cinema, e tão estereotipado, que durante qualquer projecção, ao fim de uns minutos, escrevia num papelinho qual seria o desfecho da fita. No fim da sessão, o papelinho e o desfecho coincidiam. Os amigos de Buñuel achavam isto hilariante. Eu também já experimentei esse truque, fora do cinema. Bateu igualmente certo. Eu achei tristíssimo, mas dizem-me que serviu de divertimento a terceiros. Ao menos isso.
25.7.14
Terras perdidas
Então, como no poema do cummings, hei-de virar o rosto para o outro lado, e ouvirei um pássaro a cantar terrivelmente longe nas terras perdidas. E o então é agora.
24.7.14
Factos
Esqueça as idealizações, as estratégias discursivas, a
coreografia mental, as hipóteses académicas, os eufemismos, as minudências e
atenuantes, a poesia, e pegue nos factos, nos factos em bruto. «Mas se eu esquecer isso tudo não há factos em bruto, não há sequer factos», digo eu, perdendo automaticamente a discussão.
Uma fuga íntima
Après la rupture, ils se revirent une seule fois Place de l'Opéra à Paris: «Entrevue navrante pour tous deux. Une sorte de fuite intime de part et d'autre. Lui était d'ailleurs déjà très atteint, très émotif. Puis, se retrouver ainsi soudain auprès d'une femme qu'il avait si profondément aimée et qui l'avait déçu... Reproches, entretien assez pénible. Entretien écourté où ils se sont regardés avec tristesse, et avec l'impression qu'ils ne se reverraient plus. Ce qui devait être, en effet».
[da introdução às Cartas a Lou, de Apollinaire]
[da introdução às Cartas a Lou, de Apollinaire]
23.7.14
22.7.14
O banqueiro anarquista
(...) O argumentário é engenhoso: o banqueiro procura libertar-se das ficções sociais, mas libertar-se individualmente, lembrando que a acção em grupo, a acção revolucionária, cria novas ficções, e portanto novos despotismos (facto facilmente verificável). Este anarquista do «cada um por si» diz que devemos destruir as desigualdades sociais, mas justifica as desigualdades a que chama «naturais», como a diferente inteligência ou habilidade. E esclarece que o egoísmo também é «natural», ao passo que as ideias de «dever» e de «altruísmo» são artificiais. O banqueiro liberta os outros libertando-se a si mesmo, procurando uma compensação pessoal para o seu combate, como se fosse um misto de Kropotkine e Ayn Rand.
O facto de os banqueiros portugueses parecerem apostados em desacreditar a banca sugere às vezes uma estratégia anarquista. Não é decerto um complô organizado, mas talvez seja um choque de vontades individuais, de egos individuais, que produz um resultado objectivo, que é o descrédito de quem nos deu crédito, de quem mereceu o nosso crédito. (...)
[no Expresso diário]
O facto de os banqueiros portugueses parecerem apostados em desacreditar a banca sugere às vezes uma estratégia anarquista. Não é decerto um complô organizado, mas talvez seja um choque de vontades individuais, de egos individuais, que produz um resultado objectivo, que é o descrédito de quem nos deu crédito, de quem mereceu o nosso crédito. (...)
[no Expresso diário]
20.7.14
Um sentido perspicaz
Bom observador, várias vezes dei a terceiros notícias que eles desconheciam, embora estivessem à vista. Mas, em causa própria, não vejo nada, ou não consigo interpretar nada do que vejo. E como não confio nos meus olhos, dependo do pessimismo, que é, em geral, um sentido perspicaz.
19.7.14
Big music
Volto à trilogia chamada «the big music» como quem regressa a uma paisagem de infância. Juventude, no caso. Não ouvia estes discos épicos e poéticos há quase vinte anos, primeiro porque me desinteressei musicalmente, depois porque desconfiei de tudo o que fosse entusiasmo. A reticência e o cepticismo não se desfizeram por completo, mas reencontro agora estes três discos e por momentos compreendo essa antiga exaltação, porque me lembro dela, porque tenho talvez saudades, porque alguma coisa se anuncia, quem sabe.
[The Waterboys, 1983, A Pagan Place, 1984, This Is the Sea, 1985]
18.7.14
Uma doença
Barthes confessou: «Tenho uma doença: vejo a linguagem». Sofro do mesmo mal. Esqueço facilmente os actos e nem me lembro das omissões: mas as palavras nunca se apagam.
15.7.14
Espécie de amor
Ele tinha vintes, ela sessentas. Ela era famosa, ele desconhecido. Ela gostava de homens, ele também. Yann Andréa Steiner, o último companheiro de Marguerite Duras, morreu há dias, no ano do centenário da escritora. Foi protagonista de uma das mais estranhas histórias de amor da literatura, de um dos mais inquietantes casos de vampirismo e fidelidade. Um amor louco: amor que não podia bem ser amor, e que era amor absolutamente.
Ainda estudante, Yann Lemée era fã de Duras, e escreveu-lhe muitas cartas, ao que parece muito boas. Ela não lhe respondeu, ou só esporadicamente, porque não respondia aos admiradores, embora ficasse lisonjeada. Encontraram-se, de fugida, em 1975, em Caen, depois de uma sessão de cinema. Cinco anos depois, no Verão de 1980, Duras era uma mulher envelhecida, sozinha, e atravessava um bloqueio criativo, depois de ter passado uma década essencialmente dedicada aos filmes, mais do que aos livros. Um dia, Yann telefona para a casa de praia dela em Trouville, na costa normanda. Ela convida-o, e ele parte imediatamente. Ela tem medo. Mas quando ele chega ela fica entusiasmada com aquele bretão elegante, alegre, discreto, paciente. Quando cai a noite, a anfitriã diz a Yann que não se vá embora, que os hotéis estão todos cheios, porque é Verão. Diz-lhe que pode ficar no quarto que era do filho dela. Yann fica. E não mais sairá da vida de Marguerite. (...).
[no Expresso diário]
Ainda estudante, Yann Lemée era fã de Duras, e escreveu-lhe muitas cartas, ao que parece muito boas. Ela não lhe respondeu, ou só esporadicamente, porque não respondia aos admiradores, embora ficasse lisonjeada. Encontraram-se, de fugida, em 1975, em Caen, depois de uma sessão de cinema. Cinco anos depois, no Verão de 1980, Duras era uma mulher envelhecida, sozinha, e atravessava um bloqueio criativo, depois de ter passado uma década essencialmente dedicada aos filmes, mais do que aos livros. Um dia, Yann telefona para a casa de praia dela em Trouville, na costa normanda. Ela convida-o, e ele parte imediatamente. Ela tem medo. Mas quando ele chega ela fica entusiasmada com aquele bretão elegante, alegre, discreto, paciente. Quando cai a noite, a anfitriã diz a Yann que não se vá embora, que os hotéis estão todos cheios, porque é Verão. Diz-lhe que pode ficar no quarto que era do filho dela. Yann fica. E não mais sairá da vida de Marguerite. (...).
[no Expresso diário]
13.7.14
Espécie
Despeço-me até à vista e ouço de imediato a canção que rima «so, goodbye» com «please stay with your own kind».
Não incomodo
Já trabalho há muitos anos neste hotel, de modo que não é preciso porem o «do not disturb» na maçaneta: eu sei muito bem quando devo ir à minha vida.
10.7.14
Romance da raposa
(...) Apesar da tendência hermética, a poesia de Montale sempre supôs a forte presença de figuras femininas; o poeta dizia mesmo que os críticos tinham feito daquele «tu» dos poemas uma «instituição». O «tu» chamou-se «Clizia» (Irma Brandeis) ou «Mosca» (Drusilla Tanzi), e teve outros nomes ainda. «La Volpe», «a raposa», entrou de rompante nesses «madrigais», e madrigais «privados», poemas galantes, engenhosos, intimistas. O discurso abandona o petrarquismo habitual em Montale e aproxima-se de uma carnalidade eufórica e melancólica, com «halos» e «incandescências». Os poemas a Spaziani surgem num momento em que Montale é ao mesmo tempo lírico e anti-lírico, como aliás nunca deixou de ser; o momento em que caminha para uma espécie de “prosaísmo” que marcará as colectâneas tardias, cada vez mais diarísticas.
«La bufera» era o livro preferido de Montale, que talvez devesse bastante àquela amizade amorosa libertadora, uma amizade que Spaziani definiu sugestivamente como uma «forte sugestão», difícil de definir, mas desassossegada. Tão marcante foi essa ligação que Maria Luiza Spaziani fundou e dirigiu o Centro Internacional Eugenio Montale. E ele imortalizou-a naqueles oito poemas, e num poema em especial, «Da un lago svizzero». Embora não seja um texto fácil, deixo-o aqui na versão original, e explico porquê. Leiam por favor a primeira letra de cada verso, na vertical. Chama-se um «acróstico», mas isso é apenas o termo técnico. (...)
[no Expresso diário]
«La bufera» era o livro preferido de Montale, que talvez devesse bastante àquela amizade amorosa libertadora, uma amizade que Spaziani definiu sugestivamente como uma «forte sugestão», difícil de definir, mas desassossegada. Tão marcante foi essa ligação que Maria Luiza Spaziani fundou e dirigiu o Centro Internacional Eugenio Montale. E ele imortalizou-a naqueles oito poemas, e num poema em especial, «Da un lago svizzero». Embora não seja um texto fácil, deixo-o aqui na versão original, e explico porquê. Leiam por favor a primeira letra de cada verso, na vertical. Chama-se um «acróstico», mas isso é apenas o termo técnico. (...)
[no Expresso diário]
8.7.14
Verbo
Poemas de Vitorino Nemésio, Ruy Cinatti, Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner Andresen, Fernando Echevarría, José Bento, Ruy Belo, Cristovam Pavia, Pedro Tamen, Armando Silva Carvalho, Carlos Poças Falcão, Adília Lopes e Daniel Faria.
Lançamento em Famalicão, a 12 de Julho, durante o festival de poesia Carmina, e depois em Lisboa, a 17 de Julho (Capela do Rato, 18.30), com apresentação de Fernando J.B. Martinho e leituras de Luís Miguel Cintra.
7.7.14
Um só ouvido
Oh comely,
All of your friends are all letting you blow,
Bristling and ugly, bursting with fruits falling out from the holes
Of some pretty, bright, and bubbly friend
You could need to say comforting things in your ear
But oh comely,
There isn't such one friend that you could find here.
Vega
«Talvez se lembrem de que toquei esta canção no concerto de há vinte e cinco anos», diz-nos Suzanne Vega, antes de «Ironbound», a odisseia que atravessa Newark e menciona as «Portuguese women». Eu lembro-me bem desse concerto de há vinte e cinco anos, vinte e quatro, para ser exacto, eu tinha dezassete, era o meu primeiro concerto, e estava «apaixonado». Solitude Standing foi o primeiro álbum que me fascinou e entristeceu por motivos estético-biográficos, lembro-me de chegar a casa e de o ouvir vezes sem conta na primeira aparelhagem que tive. E hoje, por mero acaso, no mesmo dia do concerto, reencontrei essa rapariga de há vinte e quatro anos, que agora não é uma «rapariga» mas uma quarentona como eu, e que aliás nunca gostou da Vega.
5.7.14
Um acentuado arrefecimento
Ao anoitecer, o género noticioso transforma-se em género profético. Foi o triunfo do profético que fez desaparecer o boletim meteorológico. A meteorologia era a única actividade televisiva que manifestava previsões plácidas e razoáveis. O triunfo da profecia fez perder o interesse por quem só se arriscara a exprimir a probabilidade de um acentuado arrefecimento nocturno.
[Miguel Tamen, no Observador]
[Miguel Tamen, no Observador]
4.7.14
Annik Honoré 1957-2014
Annik Honoré confessou que a relação com Ian Curtis foi platónica, casta, «infantil», quanto mais não fosse porque Ian tomava comprimidos que comprometiam qualquer envolvimento físico. Não quer dizer que não houvesse amor, aquele «amor que nos despedaça», embora ela não fale disso assim. Falou, aliás, o menos possível, o que lhe ficou bem. Em contrapartida, a viúva de Ian, naquela biografia humanamente compreensível mas tão mesquinha, diz que o marido e a rapariga belga tiveram um «caso». «Uma palavra odiosa», comentou Annik.
[aqui representada por Alexandra Maria Lara, em Control]
Utilíssima distinção
Uma utilíssima distinção de William Burroughs: as pessoas dividem-se entre «shits» e «mobs». Os «mobs» são aqueles que vivem e deixam viver, «minding their own business», e de quem podemos dizer com certeza que não prejudicam ninguém propositadamente. Conheço-os, alguns sabem que lhes estou grato, mas devia ter agradecido a todos, individualmente. Os que não querem ou não sabem ser «mobs» são «shits»: invejosos, murmuradores, conspiradores, conheci-os também, hoje guardo deles uma distância definitiva. Burroughs escreveu: «(…) how rare it is to see a harmless-looking person, a man who minds his own business and gets along as best he can in a world largely populated by people of a very different persuasion, kept alive by the hope of harming someone, on their way to the Comisario to denounce a neighbor (…), leaving squiggles and mutterings of malevolence in their wake (…)». Quando tiver esquecido as caras e os nomes deles e delas, ainda recordarei o seu gosto pela traição, o boicote e a difamação; o seu ódio às «persuasões diferentes»; ainda me lembrarei de que se achavam tão superiores e afinal continuam uns merdas.
1.7.14
Imagem da fotografia
Rimbaud, tendo abandonado a poesia, levou para a Abissínia uma máquina fotográfica. Bernardo Pinto de Almeida acredita que esse episódio ilumina de algum modo a condição poética da fotografia. É como se a fotografia fosse a nova poesia.
Podemos entender «Imagem da Fotografia» (livro de 1995, agora reeditado, com um prefácio de Antonio Tabucchi) como uma tentativa de entender poeticamente a fotografia, numa época em que as imagens se tornaram omnipresentes, banais e prosaicas, veículos de informação, de documentação, de constatação. Pinto de Almeida, crítico de arte e também poeta, interessa-se menos por esse tipo de fotografia, excepto como elemento da «doxa», quer dizer, da opinião recebida, do senso-comum; o que conta neste livro não é a identificação individual ou colectiva, a do álbum de família ou da ilustração de jornal, mas a fotografia enquanto enigma.
O vento não aparece nas fotografias, apenas os efeitos do vento; uma modelo não aparece numa fotografia, apenas vemos um corpo submetido a um código; uma experiência não aparece numa fotografia, apenas ficou o instante imobilizado e arquivado. As fotografias são um «memento mori», recordam o acontecido e o extinto, mas tornam essa realidade quase virtual, de tão reprodutível e reproduzida, menorizando a capacidade imaginativa da memória, e desvirtuando a noção de «original», essa aura que julgamos extinta mas da qual temos ainda nostalgia.
Herdeiro do estilo analítico-poético de livros famosos de Barthes, Berger e Sontag, mas também, lembra Tabucchi, dos fragmentos meditativos de Adorno, Bernardo Pinto de Almeida faz destes ensaios-aforismos pequenas epifanias, «instantâneos». (...)
[no Expresso-diário de hoje]
Podemos entender «Imagem da Fotografia» (livro de 1995, agora reeditado, com um prefácio de Antonio Tabucchi) como uma tentativa de entender poeticamente a fotografia, numa época em que as imagens se tornaram omnipresentes, banais e prosaicas, veículos de informação, de documentação, de constatação. Pinto de Almeida, crítico de arte e também poeta, interessa-se menos por esse tipo de fotografia, excepto como elemento da «doxa», quer dizer, da opinião recebida, do senso-comum; o que conta neste livro não é a identificação individual ou colectiva, a do álbum de família ou da ilustração de jornal, mas a fotografia enquanto enigma.
O vento não aparece nas fotografias, apenas os efeitos do vento; uma modelo não aparece numa fotografia, apenas vemos um corpo submetido a um código; uma experiência não aparece numa fotografia, apenas ficou o instante imobilizado e arquivado. As fotografias são um «memento mori», recordam o acontecido e o extinto, mas tornam essa realidade quase virtual, de tão reprodutível e reproduzida, menorizando a capacidade imaginativa da memória, e desvirtuando a noção de «original», essa aura que julgamos extinta mas da qual temos ainda nostalgia.
Herdeiro do estilo analítico-poético de livros famosos de Barthes, Berger e Sontag, mas também, lembra Tabucchi, dos fragmentos meditativos de Adorno, Bernardo Pinto de Almeida faz destes ensaios-aforismos pequenas epifanias, «instantâneos». (...)
[no Expresso-diário de hoje]