27.6.14

Ameaçado

É o amor. Tenho de esconder-me ou fugir.
Os muros da prisão erguem-se como num sonho atroz. A bela máscara transformou-se, mas é, como sempre, a única. De que me servirão os meus talismãs: o exercício das letras, a vaga erudição, a aprendizagem das palavras que usou o áspero Norte para cantar seus mares e suas espadas, a serena amizade, as galerias da Biblioteca, as coisas comuns, os hábitos, o jovem amor de minha mãe, a sombra militar dos meus mortos, a noite intemporal, o sabor do sonho?
Estar contigo ou não estar contigo é a medida do meu tempo.
Já o cântaro se quebra na fonte, já o homem se levanta ao ouvir os pássaros, já escurecem aqueles que estão às janelas, mas a sombra não lhes trouxe paz nenhuma.
É, bem sei, o amor: a ansiedade e o alívio de ouvir a tua voz, a espera e a memória, o horror de viver sucessivamente.
É o amor com as suas mitologias, com as suas pequenas magias inúteis.
Há uma esquina onde não me atrevo a passar.
Estou cercado de exércitos, hordas.
(Este quarto é irreal; ela nunca o viu.)
Há um nome de mulher que me denuncia.
Há uma mulher que me dói no corpo todo.


[Jorge Luis Borges, «El amenazado», de El Oro de los Tigres, 1972, versão PM]

26.6.14

Elogio do secundário



Terei visto muitíssimas dezenas de filmes com Eli Wallach (1915-2014), que fez uma centena. Daqueles que me lembro bem, Wallach quase só tinha algum protagonismo no lascivo Baby Doll, ele que vinha justamente da escola Elia Kazan / Tennessee Williams; em Os Sete Magníficos, um bom mas escusado remake de Kurosawa; em Os Inadaptados, onde dançou com Marilyn como só dança um amigo; e em O Bom, o Mão e o Vilão, coboiada inóspita onde fez de vilão («the ugly»), facto que só descobriu por exclusão de partes. Morreu agora, quase centenário, depois de uma vida inteira no teatro (onde, disse, lhe davam papéis de homem «irritado e incompreendido») e no cinema (onde fez muitas vezes o mau da fita, ou o intempestivo, e, mais tarde, o sábio bom). Pertenceu a uma grande geração teatral, a do «método», uma geração que se tornou conhecida por causa do cinema. E se me lembro tão bem dele é porque entrou em vários filmes dos quais não me lembro de nada senão dele.  Acho que me lembro dele até em filmes que não vi. Isto porque Eli Wallach era um dos grandes símbolos do «secundário», essa instituição americana, que nos deu tantos e tão bons: «attendant lords», como no poema de Eliot, «(...) one that will do / To swell a progress, start a scene or two,  / Advise the prince; no doubt, an easy tool, / Deferential, glad to be of use, / Politic, cautious, and meticulous; / Full of high sentence, but a bit obtuse; / At times, indeed, almost ridiculous - / Almost, at times, the Fool». Incansável, confiável, dedicado, chamava-se Eli Wallach, e era um «senhor» mesmo quando fazia de «bobo».

Todos a seu tempo

Num poema de Sena, várias experiências conhecidas, «mágoas, humilhações, tristes surpresas», esta última especialmente sofrida, e um photomaton, «inquieto e franco, altivo e carinhoso», adjectivos todos a seu tempo desprezados, especialmente o último.

24.6.14

Precauções



Already all confusion. Things and imaginings. As of always. Confusion amounting to nothing. Despite precautions.

[Beckett, Ill Seen Ill Said, 1981/82]

Uma questão crítica

A minha oitava coluna no Expresso diário [requer registo prévio].

Há uns meses, na «New Yorker», Lee Siegel (de quem li uma excelente colectânea de textos sobre televisão e uma jeremiada contra a tecnologia) anunciou que ia «enterrar o machado», quer dizer, que abandonava a «crítica negativa» que praticou com tanto empenho.

Siegel aproveitou essa confissão para responder ao australiano expatriado Clive James (um crítico erudito e mordaz). James tinha escrito um artigo dizendo que em Inglaterra as recensões eram, e ainda bem, muito «críticas», ou sejam, arrasadoras («hatchet jobs», como se diz em inglês), ao passo que os «reviewers» americanos se mostravam demasiado polidos, cautelosos, timoratos.

Siegel contesta essa ideia, citando exemplos de diferentes décadas. Dos críticos (não apenas literários) que invoca, conheço um pouco ou bastante bem os clássicos Dwight Macdonald, Pauline Kael, Mary McCarthy e Elizabeth Hardwick, gente bastante difícil de agradar, bem como uns quantos vivos, o rezingão John Simon, a ferina Renata Adler e o arrasador Dale Peck. Este último, autor de uma divertidíssima compilação de críticas negativas chamada justamente «Hatchet Jobs» (2004), esventrou com gosto vários contemporâneos, e até aparecia na capa da edição americana com um machado às costas. (...)

18.6.14

Impertinência

Quis citar um verso de cummings, «i and / my life will shut very beautifully». Mas isso é de um poema quase eufórico, lembrei-me logo, com impertinência bibliográfica.

17.6.14

Irmão, onde estás?

A minha sétima coluna no Expresso diário [requer registo prévio].

«Espécie de Amor» (2014) é uma evocação dos anos em que Pedro e Miguel eram os melhores amigos um do outro, cúmplices, quase gémeos, a viver na mesma casa, a trabalhar na mesma empresa, a ler ao mesmo tempo os mesmos escritores europeus sofisticados, a divertirem-se juntos com raparigas em hotéis e com substâncias químicas. É um livro confessional como raramente temos visto, isento de auto-elogio, snobismo, denúncia ou vingança, um texto de uma candura absoluta, inocente mesmo quando desconfortável, por excesso de informação e detalhes escusados.

Pedro Paixão, como muita gente, considerava Miguel Esteves Cardoso um génio, capaz de amotinar o jornalismo português (como de facto aconteceu) e a literatura portuguesa (o que não se verificou). Paixão conta que MEC detestava os jornais, as crónicas, que isso servia apenas para ganhar dinheiro, que guardava em maços, com os quais pagava os confortos e os vícios; mas Miguel queria-se um Wittgenstein ou um Beckett, alguém assim brilhante, carismático, fundamental, alguém que pensasse e escrevesse grandes livros, mesmo depois de o pensamento e a literatura terem sido devastados por um século catastrófico. (...)

16.6.14

Em frente ou aos círculos

Em Dublinesca (2010), Vila-Matas cita uma entrevista de Claudio Magris, segundo o qual a viagem de «regresso a casa» circular, a de Ulisses e de Bloom, deu hoje lugar à viagem rectilínea. Mas em certas patologias, andar em frente ou aos círculos vai dar ao mesmo. Em certas patologias, «regressar a casa» é uma patologia.

Bloomsday




















Cento e dez anos depois, um bom dia para tomar decisões, ou antes, «decisões».

Imoralidade lúdica

Um detalhe trivial durante uma conversa grave, uma frase divertida numa ocasião inapropriada, uma espécie de imoralidade lúdica.

15.6.14

É muito isso

















Home Truths (1981), uma colectânea de contos de Mavis Gallant, abre com esta epígrafe de Pasternak: «Only personal independence matters».

13.6.14

Únicos (2)

Ela não se sentia nem um pouco orgulhosa, orgulhosa de quê?, homens daqueles há às dúzias, e todos tão alienados que se acham únicos.

Únicos (1)

Uma alcoólica em estado avançado que esteve hospitalizada ao mesmo tempo que John Berryman, deixou-nos este retrato cru do poeta americano: « (...) he was constantly retreating into his uniqueness, but he really thought it was all he had that made him worth anything. So he stayed shut out (...)».

Where is my mind

Germanos

A minha sexta coluna no Expresso diário [requer registo prévio], excepcionalmente à sexta-feira.

Em tempo de Feira, descobrimos sempre livros que nos tinham escapado até agora. Este ano comprei por exemplo «A Germânia», de Tácito.

O eloquente advogado e político romano escreveu no ano de 98 um breve estudo histórico-etnográfico sobre os Germanos e os povos vizinhos, que eram vistos como potencial ameaça ao Império. O texto baseia-se em alguma, pouca, observação directa, e em testemunhos indirectos, alguns discutíveis, e até tenta ser equânime; no entanto, são frequentes as passagens desagradáveis.

Os germanos são apresentados como gente bárbara e belicosa: «(…) olhos ferozes e azuis, cabeleiras ruivas, corpos grandes apenas vigorosos para a fúria dos ataques», o que devia ser factual. «Quando não andam em guerras, não passam muito tempo em caçadas, mas na ociosidade, entregues ao sono e à comida: os mais fortes e aguerridos, nada fazendo, ficam apáticos, entregue o cuidado da casa, dos penates e dos campos às mulheres, aos velhos e aos mais fracos da família: por estranha contradição da natureza, os mesmos homens amam a inacção e odeiam o repouso». Ironia histórica, esta observação sobre a ociosidade dos povos germânicos.

A Germânia de Tácito é um sítio pouco convidativo: «Acreditaria que os próprios Germanos são autóctones e pouco misturados com outras raças por migrações e relações de hospitalidade, porque outrora não era por terra, mas em barco, que se transportavam os que procuravam mudar de residência; e além, o Oceano imenso, e por assim dizer hostil, só é visitado por raros navios do nosso mundo. Mas, independentemente do perigo do horrendo e ignoto mar, quem é que, deixando a Ásia ou a África ou a Itália, demandaria a Germânia, feia nas terras, áspera no clima, tristes nos costumes e aparência (…)?»

Bem sei que o preconceito contra os fracos é mais censurável do que o preconceito contra os fortes; mas, ainda assim, «Germânia» lembrou-me o cansativo discurso actualmente vigente, a demonização dos «alemães», dos germanos, conversa que é o reverso da arenga imbecil contra os mandriões do Sul. (...).

12.6.14

Letra morta

Dizem-me, com a ênfase sobranceira de quem dá conselhos: «Não faças isso por ele: ele nunca faria isso por ti». Mas eu pertenço a uma antiquíssima facção que inverte esse raciocínio: gostaria que ele fizesse isso por mim, portanto faço isso por ele. O meu interlocutor parece espantado: ou nunca ouviu tal coisa ou achava que era letra morta.

Camaradas

















Não sou jornalista, mas sou «dos jornais», há dezasseis anos, e é uma tristeza ver os jornais a fecharem, ou a fecharem a torneira, a morrerem às prestações, prescindindo da experiência e da memória. Deixo aqui um abraço a alguns dos meus «camaradas» (como os jornalistas dizem) agora dispensados, em especial, como compreenderão, àqueles com quem trabalhei durante vários anos, nomeadamente em dois suplementos nos quais colaborei com entusiasmo, chamados DNa e 6ª.

11.6.14

Bronze

Sou como aquele meu tio que dizia que tinha ganho uma medalha de bronze numa corrida a três.

9.6.14

A mancha humana

Círculos concêntricos: as pessoas de quem gosto e aquelas em quem confio. Mas enquanto a primeira circunferência tem um diâmetro apreciável, a segunda é tão pequena que se confunde com uma mancha de tinta.

8.6.14

Esta terça











16h, Praça Laranja
Lançamento de «Equatorial», de Fabiano Calixto, e «Jóquei», de Matilde Campilho (quinto e sexto títulos da colecção de poesia da Tinta-da-china).
Com Matilde Campilho e o actor Vitor d'Andrade.

19h, Praça Leya
Lançamento do ensaio «Conservadorismo» (Dom Quixote), de João Pereira Coutinho.
Com Joana Amaral Dias e João Pereira Coutinho.



7.6.14

It isn't as pretty as you'd like to guess

Oh comely, I will be with you when you lose your breath,
Chasing the only meaningful memory you thought you had left.
With some pretty, bright and bubbly terrible scene
That was doing her thing on your chest.

But oh comely,

It isn't as pretty as you'd like to guess
In your memory, you're drunk on your awe ,to me
It doesn't mean anything at all.

4.6.14

Fizemos-te aquilo que és



We cut the cord that brought you here
We left you on your own
We filled your head with wild ideas
Our beliefs led you on

We leave a trail that's always changed
To keep your hopes alive
This surface may seem calm enough
But underneath, underneath

We made you feel the way you are is wrong
We made you what you are
You are afraid
If you don't play the game, we'll make you change

3.6.14

A colher na boca

Como escreve Miguel Tamen, pôr xarope numa colher, levar a colher à boca e engolir o xarope pode corresponder aos movimentos de um acto de alimentação, mas ninguém confundiria isso com um acto de alimentação. Imitar esses movimentos talvez mate a tosse, mas não mata a fome.  

Alice, ou o que nos acontece


















A minha quinta coluna no Expresso diário [requer registo prévio].

Não devo ter lido recentemente nenhum ensaio tão bom sobre estética, crítica e filosofia da arte do que um livrinho escrito para crianças de sete anos. Esta afirmação contém uma falácia, claro, porque o livro em causa avisa explicitamente que não pode ser entendido por pessoas de sete anos, embora use exemplos entendíveis por gente com sete anos apenas.

O livro chama-se “What Art is Like, in Constant Reference to the Alice Books” (Harvard University Press, 2012). O autor, Miguel Tamen, é professor nas universidades de Lisboa e de Chicago, e uma das pessoas mais inteligentes que conheço. Tal como Kierkegaard escreveu uma tese intitulada “O Conceito de Ironia, com Constante Referência a Sócrates”, Tamen testa conceitos de filosofia da arte, estética e crítica citando apenas dois livros: “As Aventuras de Alice no País das Maravilhas” (1865) e “Alice do Outro Lado do Espelho” (1871).

É verdade que Lewis Carroll quis apenas contar umas fantasias sobre uma menina à conversa com gatos, ratos, tartarugas, morsas, faisões e coelhos, mas “(…) apesar de não apresentarem quase nenhuma opinião sobre arte, os dois livros sobre a Alice ultrapassam em dificuldade e em importância” os estudos mais eruditos. “Como os livros sobre a Alice foram escritos para crianças de sete anos, este livro [o ensaio de Tamen] também sugere de algum modo que qualquer criança de sete anos pode ter uma noção genérica dos problemas relacionados com a arte. Mas como é improvável que este livro seja lido por crianças de sete anos, o modo como faz as coisas [“the way it goes about its business”] também deve ser interpretado como um apelo para que o público adulto mude a sua maneira de pensar sobre estes assuntos”.

Escrito à maneira wittgensteiniana, em fragmentos que se sucedem numa ordem mais ou menos lógica e discursiva, e num estilo contido e divertido, “What Art is Like” é especialmente memorável quando dedica algumas páginas à poesia, embora a poesia possa servir como analogia para todas as artes. Um poema, segundo Tamen, é antes de mais um objecto escrito numa linguagem que não conhecemos. Mas não é uma língua estrangeira, como o sueco, uma língua que os nativos compreendem bem e que um português aprende se quiser. Tanto para uma língua estrangeira como para um poema temos à disposição dicionários, enciclopédias, traduções, bibliografia secundária: mas a poesia não é a língua de ninguém, nem sequer uma língua segunda, continua sempre estranha e como que inapreensível. Quando ouvimos sueco e não sabemos uma palavra de sueco, ouvimos ruídos suecos, digamos, e podemos eventualmente comentar que esses ruídos são “bonitos”, como dizemos que um poema é “bonito”; mas isso apenas significa que não percebemos nada, de sueco ou do poema. (...)

A chuva e o bom tempo



Ela ofereceu-me a primeira edição do Mau Tempo no Canal, como se transformasse a chuva em bom tempo.

What Difference Does It Make?

All men have secrets and here is mine
So let it be known
For we have been through hell and high tide
I think I can rely on you
And yet you start to recoil
Heavy words are so lightly thrown
But still I'd leap in front of a flying bullet for you


Belos e malditos

Há os belos malditos, quer dizer, belos e malditos, como em Fitzgerald, e em tanta biografia de gente famosa. E há os belos ou malditos, categorias que se distinguem facilmente, e que só por romantismo intempestivo se confundem. Basta notar como os outros olham ou são olhados e percebemos quão verdadeiramente malditos ou belos, se é apenas inquietude, precipitação, poesia, ou se uns e outros estão condenados à sua miséria individual, quer essa miséria se chame sucesso ou fealdade.

2.6.14

Firs, último acto

O último que apague a luz. E como toda a gente se foi embora, o último é quem ficou. Ele que apague a luz, se não a apagaram antes. Pode apagar a luz e tentar fugir também, ou apagar a luz e ficar às escuras. Ou perceber que se esqueceram dele e levaram a última luz . Não há nenhuma luz que nunca se apague.

1.6.14

Feira do Livro de Lisboa

3 de Junho, terça-feira, 19h, Praça Azul
Debate: Ler a Bíblia
Com João Miguel Tavares, Pedro Mexia e Tiago Cavaco

10 de Junho, terça-feira, 16h
Lançamento de Equatorial, de Fabiano Calixto, e Jóquei, de Matilde Campilho (quinto e sexto títulos da colecção de poesia da Tinta-da-china)
Com Matilde Campilho e Pedro Mexia

10 de Junho, terça-feira, 19h, Praça Leya
Lançamento do ensaio Conservadorismo (Dom Quixote), de João Pereira Coutinho
Com Joana Amaral Dias, João Pereira Coutinho e Pedro Mexia