Alice, ou o que nos acontece
A minha quinta coluna no Expresso diário [requer registo prévio].
Não devo ter lido recentemente nenhum ensaio tão bom sobre estética, crítica e filosofia da arte do que um livrinho escrito para crianças de sete anos. Esta afirmação contém uma falácia, claro, porque o livro em causa avisa explicitamente que não pode ser entendido por pessoas de sete anos, embora use exemplos entendíveis por gente com sete anos apenas.
O livro chama-se “What Art is Like, in Constant Reference to the Alice Books” (Harvard University Press, 2012). O autor, Miguel Tamen, é professor nas universidades de Lisboa e de Chicago, e uma das pessoas mais inteligentes que conheço. Tal como Kierkegaard escreveu uma tese intitulada “O Conceito de Ironia, com Constante Referência a Sócrates”, Tamen testa conceitos de filosofia da arte, estética e crítica citando apenas dois livros: “As Aventuras de Alice no País das Maravilhas” (1865) e “Alice do Outro Lado do Espelho” (1871).
É verdade que Lewis Carroll quis apenas contar umas fantasias sobre uma menina à conversa com gatos, ratos, tartarugas, morsas, faisões e coelhos, mas “(…) apesar de não apresentarem quase nenhuma opinião sobre arte, os dois livros sobre a Alice ultrapassam em dificuldade e em importância” os estudos mais eruditos. “Como os livros sobre a Alice foram escritos para crianças de sete anos, este livro [o ensaio de Tamen] também sugere de algum modo que qualquer criança de sete anos pode ter uma noção genérica dos problemas relacionados com a arte. Mas como é improvável que este livro seja lido por crianças de sete anos, o modo como faz as coisas [“the way it goes about its business”] também deve ser interpretado como um apelo para que o público adulto mude a sua maneira de pensar sobre estes assuntos”.
Escrito à maneira wittgensteiniana, em fragmentos que se sucedem numa ordem mais ou menos lógica e discursiva, e num estilo contido e divertido, “What Art is Like” é especialmente memorável quando dedica algumas páginas à poesia, embora a poesia possa servir como analogia para todas as artes. Um poema, segundo Tamen, é antes de mais um objecto escrito numa linguagem que não conhecemos. Mas não é uma língua estrangeira, como o sueco, uma língua que os nativos compreendem bem e que um português aprende se quiser. Tanto para uma língua estrangeira como para um poema temos à disposição dicionários, enciclopédias, traduções, bibliografia secundária: mas a poesia não é a língua de ninguém, nem sequer uma língua segunda, continua sempre estranha e como que inapreensível. Quando ouvimos sueco e não sabemos uma palavra de sueco, ouvimos ruídos suecos, digamos, e podemos eventualmente comentar que esses ruídos são “bonitos”, como dizemos que um poema é “bonito”; mas isso apenas significa que não percebemos nada, de sueco ou do poema. (...)