31.1.15
30.1.15
Temperatura zero
Lembro-me de trautear o «Permafrost» dos Magazine quando a temperatura baixava. Quando cheguei à temperatura zero, pareceu-me impudica essa canção.
Temperaturas
Sou pelo método das temperaturas. As ideias enganam, e as suposições tantas vezes supõem mal; mas a temperatura humana imediata diz tudo o que precisas de saber, antes das tristes ilusões e dos violentos eufemismos.
28.1.15
Um conselho
RABBI MARSHAK: When the truth is found to be lies. And all the hope within you dies. Then what? Grace Slick. Marty Balin. Paul Kantner. Jorma... something. These are the membas of the Airplane. Be a good boy.
[Alan Mandell em Um Homem Sério (2009), de Joel e Ethan Coen]
22.1.15
Último dos últimos
Desonrada e desamparada, a menina Júlia decidiu morrer, mas vem-lhe à ideia uma dúvida teológica. Logo a ela que, aparentemente, não acredita no outro mundo. Disseram-lhe que os ricos dificilmente entram no Reino do Céus. E que os últimos são os primeiros, e os primeiros últimos. E ela, que é rica, fica angustiada com isso. Pergunta se não há hipóteses de os primeiros se salvarem também. Isso não lhe posso garantir, diz o criado, mas a menina Júlia já não pertence aos primeiros, diz ele: depois do que fez, pertence aos últimos dos últimos.
Qual dos dois
A senhora Disraeli dizia que o marido era «warm in love but cold in friendship». Também sou assim, mas conheço quem funcione exactamente ao contrário. Talvez dependa de qual dos dois nos traiu primeiro.
20.1.15
A sucessora
Teria um sucessor debaixo de olho? Sendo as relações humanas tão frágeis como eram, talvez houvesse no subconsciente listas de substitutos, de suplentes - homens encontrados no parque ao passear o cão; pessoas com quem se trocara umas palavras no Museu de Arte Moderna; aquele tipo das suíças; aqueloutro dos olhos pretos e cativantes; o homem com uma criança no sanatório, cuja mulher sofre de esclerose múltipla. Juntamente a múltiplas ideias e propósitos, havia múltiplas pessoas.
[Saul Bellow, O Planeta do Sr. Sammler, 1970, trad. José Miguel Silva]
Último reduto
Uma personagem de Bellow diz que as palavras são para os velhos, ou para jovens de coração velho. Imagina-se em geral o oposto disso: que as palavras são sobretudo para os novos, uma vez que os novos não distinguem bem as palavras e a realidade, as palavras e a verdade. Ao passo que os velhos desconfiam. Mas, talvez por isso, os mais velhos tratam as palavras com outro respeito, como se elas valessem por si mesmas, como se fossem um último reduto.
18.1.15
Um coro grego
Em torno de quem falou, os silenciosos: um coro grego que na despedida te reduz à insignificância.
16.1.15
15.1.15
Uma brincadeira
The Oxford University Press has warned its writers not to mention pigs, sausages or pork-related words in children's books, in an apparent bid to avoid offending Jews and Muslims. The existence of the publisher's guidelines emerged after a radio discussion on free speech in the wake of the Paris attacks. Speaking on Radio 4's Today programme, presenter Jim Naughtie said: «I've got a letter here that was sent out by OUP to an author doing something for young people. Among the things prohibited in the text that was commissioned by OUP was the following: 'Pigs plus sausages, or anything else which could be perceived as pork'.«Now, if a respectable publisher, tied to an academic institution, is saying you've got to write a book in which you cannot mention pigs because some people might be offended, it’s just ludicrous. It is just a joke.»
[do Telegraph]
[do Telegraph]
14.1.15
Liberdade sem «mas» (2)
Uma liberdade que inclui, que inclui forçosamente, a insensatez e o mau-gosto, a invectiva e a blasfémia, o asco e o gozo. Uma liberdade onde os ofendidos podem contestar, protestar, ou recorrer aos tribunais. Uma liberdade a que se responde com liberdade.
11.1.15
Anita Ekberg 1931-2015
Ninguém recordaria esta Miss Suécia se não tivesse havido Fellini e a Fontana de Trevi. É verdade que ela foi protegida de Howard Hughes, estrela da Paramount, pin-up sub-Monroe, que filmou com Tashlin e com Vidor, que contracenou com Wayne e Martin & Lewis, que terá sido namorada de Sinatra & tutti quanti; mas Fellini viu uma foto dela a molhar os pés naquela fonte romana, depois de uma noitada, e encontrou um ícone tão duradouro como a própria designação paparazzo, outro legado imortal de La Dolce Vita (1960). Veríamos Ekberg quase trinta anos mais tarde, na divertida e tristíssima Entrevista (1987), ao lado de «Marcello-come-here», uma sombra do que tinha sido, e como podia ser de outro modo? Mas ninguém a esquece aos vinte e muitos, tão nórdica, de vestido de noite sem alças, descalça e à luz da lua, Fontana de Trevi adentro. Marcello faz um gesto de quem toca a medo: tudo aquilo é visão, fantasia, demasiado bom para ser verdade. Tudo aquilo é a imagem do mundo que devemos ao cinema: onírica, inverossímil, deslumbrante, às vezes pouco subtil, mas inesquecível como um fantasma ou uma cidade eterna.
Fonte
Ela é a fonte. Eu posso saber que é
a grande fonte
em que todos pensaram. Quando no campo
se procurava o trevo, ou em silêncio
se esperava a noite,
ou se ouvia algures na paz da terra
o urdir do tempo --
cada um pensava na fonte. Era um manar
secreto e pacífico.
Uma coisa milagrosa que acontecia
ocultamente.
[H.H.]
10.1.15
Liberdade sem «mas»
Leio boa parte dos liberais modernos com reservas e distâncias, sobretudo em matéria económico-social. Em compensação, nunca deixo de me entusiasmar com os autores do liberalismo clássico, sobretudo com a veemente defesa das liberdades individuais. O texto de Constant sobre a imprensa, por exemplo, podia ter sido escrito ontem. Por isso, é bom encontrar na imprensa liberal de agora uma formulação impecável sobre o ataque ao Charlie Hebdo: «The magazine had the right to publish everything it did, and French law is right to allow it to. There can be no “but” in that sentence. Even when a picture or opinion is imprudent or tasteless, unless it directly incites violence it should not be banned. Charlie Hebdo lampoons all religions, not just Islam—but it would have the right to single out that faith if it wanted to, just as Islamists in Europe are entitled to denounce Western decadence if they so choose. In any case, there is a world of difference, and several centuries of liberal political thought, between giving and taking offence and killing people over it. Nothing can be done with a pencil or a keyboard that warrants a reprisal with a Kalashnikov». [do editorial da Economist].
8.1.15
Direcção geral
Les musulmans ont exigé d’avoir la haute main sur l’Education. L’enseignement est privatisé. Les professeurs non convertis sont virés, mais comme tout est financé par les monarchies pétrolières, on laisse aux jeunes retraités plein traitement. Peu à peu, les femmes rentrent à la maison. Du coup, le chômage et les impôts baissent, la paix sociale s’installe. On peut lire la Nausée comme une atteinte à l’image du Havre et Erostrate comme un appel au meurtre gratuit; on peut lire Soumission comme un roman islamophobe, islamophile, misogyne, machiste, et même, à certains moments, quasiment pédophile: Houellebecq est un moraliste à la puissance mate, il provoque donc des réactions moralisantes. On peut aussi lire ce roman comme une farce triste, un divertissement provocateur, qui permet de réfléchir à nos peurs, justifiées ou pas, en s’amusant. Dans Plateforme, en 2001, le discours anti-musulman était tenu par un Egyptien. Dans Soumission, l’analyse politique de l’islam de France est faite par un ex-flic de la DGSI. [Direction générale de la securité intérieure]
[Philippe Lançon, baleado gravemente no ataque de ontem, no Libération da última sexta-feira]
[Philippe Lançon, baleado gravemente no ataque de ontem, no Libération da última sexta-feira]
7.1.15
Primeiras pessoas
Há uns meses, li um pequeno ensaio inesperado e pertinente sobre Michel Houellebecq, escrito por um economista e colunista do Charlie Hebdo, Bernard Maris.
Hoje, saiu o novo romance de Houllebecq, Soumission, que imagina a França governada por um Presidente islamista. Hoje também, dois homens fortemente armados entraram na redacção do jornal político-satírico e executaram dez jornalistas, incluindo o director, Charb, quatro cartoonistas, Cabu, Honoré, Tignous e Wolinski. Bernard Maris é uma das vítimas mortais. E o crítico literário que recenseou o romance de Houellebecq está no hospital, em estado grave. Os homicidas escaparam, aos gritos de «Allahu Akbar», meteram-se num carro com um comparsa, e ainda estão a monte. Foi o maior massacre em território francês no último quarto de século, e, politicamente, o mais grave desde o afogamento em massa dos argelinos em 1961.
Houellebecq é um «reaccionário» de direita. O Charlie Hebdo é uma publicação da esquerda anarco-libertária. Mas têm em comum perceber que não se finge que não foi nada depois da condenação à morte de Salman Rushdie, depois da destruição das Torres Gémeas, depois de degolarem o jornalista Daniel Pearl, depois das bombas na estação de Atocha e no metro de Londres, depois do homicídio de Theo van Gogh, depois das ameaças e ataques ao cartoonista dinamarquês Kurt Westergaard, depois das decapitações de ocidentais registadas em vídeo. Em todos os casos, ataques a civis, a jornalistas, escritores, artistas, a activistas humanitários, bem como a transeuntes e outros cidadãos anónimos. «Somos todos americanos», disse muita gente em 2001. «Je suis Charlie», exclamam tantos em 2015. Primeiras pessoas do singular e do plural, este «eu» e este «nós»: jornalistas, escritores, artistas, activistas, transeuntes, cidadãos.
6.1.15
Vai e vem
De um dos diários de Roland Jaccard, escritor suíço, autobiografista, especialista em psicanálise, engatatão impenitente, amigo de Cioran, esta frase: «(…) une femme entre dans votre vie, c’est miraculeux; elle en sort, c’est providentiel».
5.1.15
Quem viu muito
Podia citar-lhes uma frase de Amanhã na Batalha Pensa em Mim: sofrem daquele optimismo que afecta quem viu muito e não entendeu nada.
O misantropo amável
Tinha descoberto há uns meses André Blanchard, e agora descubro que morreu. Era um descendente de Léautaud, em menos ácido, um diarista afastado da corte, hostil à moda e à grandiloquência, pouco à vontade com a modernidade, classicista, elegante, enfadado. Vivia na província, tranquilo e tristonho, com gatos e livros. Chamaram-lhe um «jansenista luminoso», um «misantropo amável», como eu gosto. Tenho lido com prazer os seus livrinhos diarísticos, de tiragem mínima e público mínimo. O último chamou-se, ironicamente, À la demande Générale.
Conceitos
Maurice Duverger, que morreu há dias, cunhou alguns conceitos marcantes. Escolho três. Um deles, que me parece extremamente negativo, é o de «semi-presidencialismo», que, na versão portuguesa, é um «nem-nem» que propicia indecisões, excessos, omissões, frustrações. O outro é a «monarquia presidencial», um estatismo personalizado que é bem um vício francês, e que é o oposto dos regimes parlamentares, monárquicos ou republicanos, ainda hoje o regime mais decente disponível. O terceiro, o meu preferido, é a designação «professeur au journal Le Monde», quer dizer, um académico que fez vida pública nos jornais; quase todos os intelectuais que foram importantes para mim publicaram colunas ou jornalismo, e dá gosto um académico que reconhece a importância democrática e civilizacional da imprensa.