Primeiras pessoas
Há uns meses, li um pequeno ensaio inesperado e pertinente sobre Michel Houellebecq, escrito por um economista e colunista do Charlie Hebdo, Bernard Maris.
Hoje, saiu o novo romance de Houllebecq, Soumission, que imagina a França governada por um Presidente islamista. Hoje também, dois homens fortemente armados entraram na redacção do jornal político-satírico e executaram dez jornalistas, incluindo o director, Charb, quatro cartoonistas, Cabu, Honoré, Tignous e Wolinski. Bernard Maris é uma das vítimas mortais. E o crítico literário que recenseou o romance de Houellebecq está no hospital, em estado grave. Os homicidas escaparam, aos gritos de «Allahu Akbar», meteram-se num carro com um comparsa, e ainda estão a monte. Foi o maior massacre em território francês no último quarto de século, e, politicamente, o mais grave desde o afogamento em massa dos argelinos em 1961.
Houellebecq é um «reaccionário» de direita. O Charlie Hebdo é uma publicação da esquerda anarco-libertária. Mas têm em comum perceber que não se finge que não foi nada depois da condenação à morte de Salman Rushdie, depois da destruição das Torres Gémeas, depois de degolarem o jornalista Daniel Pearl, depois das bombas na estação de Atocha e no metro de Londres, depois do homicídio de Theo van Gogh, depois das ameaças e ataques ao cartoonista dinamarquês Kurt Westergaard, depois das decapitações de ocidentais registadas em vídeo. Em todos os casos, ataques a civis, a jornalistas, escritores, artistas, a activistas humanitários, bem como a transeuntes e outros cidadãos anónimos. «Somos todos americanos», disse muita gente em 2001. «Je suis Charlie», exclamam tantos em 2015. Primeiras pessoas do singular e do plural, este «eu» e este «nós»: jornalistas, escritores, artistas, activistas, transeuntes, cidadãos.