30.11.14

Iluminação apropriada

To critics who complained that his poems, with their emphasis on death, despair and dissolution, were too dark, he replied, “I find them evenly lit.”

[do obituário do poeta americano Mark Strand, no New York Times]

O inadmissível

Passados os 40 comecei finalmente a não admitir o inadmissível. É uma satisfação moral e um desastre social.

28.11.14

O tipo de fracasso

Para teres sucesso precisas de uma enorme auto-confiança e de um qualquer grupo que te apoie. Há casos em que só a auto-confiança basta, e outros em que fazeres parte de um grupo é garantia suficiente. Mas se fores dado ao individualismo e à dúvida, escolhe o tipo de fracasso que preferes.

27.11.14

Espadas

Terminada enfim a época das espadas, dirigi-me ao faquir e disse, como na canção do Dylan: «Aqui tens a garganta que me emprestaste».

26.11.14

O que não sabem

«Vivo daquilo que os outros não sabem de mim», escreveu Peter Handke, e engana-se quem acha isto um obstáculo à autobiografia.

25.11.14

Do tribalismo












When two tribes go to war / A point is all you can score [FGTH]

24.11.14

O rebelde premiado

O Cervantes atribuído ao inventivo e contundente Juan Goytisolo é tão merecido quanto divertido. Ontem, ainda antes do Cervantes, o escritor confessava ao El País: «Cuando me dan un premio siempre sospecho de mí mismo. Cuando me nombran persona non grata sé que tengo razón».

19.11.14

Prévost

Encontro esta citação de Prévost, abade incorrigível, a propósito de uns seus amores funestos na Holanda: «Foi o desgraçado fim de um compromisso demasiado terno». Tudo bate certo, o fim e a desgraça, até aqui a frase é banal, mas sobretudo a ideia (fradesca?) de um «compromisso», e de uma «ternura» em «demasia». Uma ternura que Prévost percebe que está mais ligada à desgraça do que ao compromisso. Não conheço nenhuma holandesa, mas aqui é o mesmo.

Aquilo que esperávamos



E chega o momento em que todas as pessoas fazem aquilo que esperávamos delas, pelo menos desde que aprendemos a esperar o pior das pessoas: «Judas Brutus Quisling time has come to do / What's expected of you».

18.11.14

Intermediários

Num ensaio sobre Maurice Blanchot Critique, Yun Sun Limet lembra que Blanchot escreveu sobre literatura procurando quase sempre um «descentramento» e uma escolha de «intermediários», fossem críticos ou biógrafos: «René Char via Roger Mounin, a leitura de Hölderlin que passa pela leitura de Heidegger, Baudelaire por Sartre, Goethe por Eckermann, Kafka por Brod, Proust por Feuillerat, Rosseau por Starobinski, Mallarmé de novo por Georges Poulet, Heráclito por Clémence Ramnoux, Kafka de novo por Marthe Robert (...)». Foi isso que mais me interessou quando descobri Blanchot, mas não descobri logo que tinha sido isso, porque, à época, esse método me interessaria bastante pouco, ao passo que hoje me interessa mesmo muito. Duvido é que o recurso a «intermediários» signifique um «descentramento», pelo menos para todos nós que não somos Blanchot.

1959















Ele tem um pé no passeio, onde estão todos os outros, e um pé na estrada, como se estivesse de saída. Parece o mais novo naquela foto tirada pelo fotógrafo italiano Mario Dondero, uma das mais célebres da literatura contemporânea, e parece não fazer bem parte daquilo. Chamava-se Claude Ollier, e morreu o mês passado, aos 91 anos. Os outros eram Alain Robbe-Grillet, Claude Simon, Claude Mauriac, o editor Jérôme Lindon, Robert Pinget, Samuel Beckett e Nathalie Sarraute, os autores do chamado «Nouveau Roman», aqui à porta das Éditions de Minuit, em Paris, no outono de 1959. (...)

Nunca li uma linha de Claude Ollier, sempre pensei em Ollier como o homem da fotografia, e que eu só conhecia da fotografia. Mas nos últimos anos fui descobrindo alguns dos outros escritores, quase todos entretanto esquecidos ou menosprezados. E parece-me que Robbe-Grillet tinha razão quando, em «Pour un Nouveau Roman» (1963) protestava contra as simplificações, os erros, e os mal-entendidos. (...)

[hoje, no Expresso diário]

Papel de parede

Enquanto te declarares responsável de tudo aquilo que acontece, tudo o que te acontecer é culpa tua. Tantos anos nisto, mais parece comodismo do que masoquismo. Agora aprendeste, não é sem tempo. Encontraste a tua dignidade, que mal conheces. Gottfried Benn avisou: enquanto usarmos a nossa pele como papel de parede não podemos vencer.

17.11.14

But one concern

Fogey

«The engagement is announced between Benedict, son of Wanda and Timothy Cumberbatch of London, and Sophie, daughter of Katherine Hunter of Edinburgh and Charles Hunter of London». Assim, à antiga, num jornal em papel, de modo discreto e elegante, e fugindo como das víboras à cultura das celebridades, dos «exclusivos», das «redes sociais», o actor inglês Benedict Cumberbatch anunciou o seu casamento. «The engagement is announced of», que fogey, que estilo.

Vénus

















Entretidos com o rapazinho que parece uma rapariguinha, ou com a actriz com ancas, ou com a mulher barbada, ou com a celebridade rabuda, esquecemos o caso mais interessante de todos, o caso de Myla Dalbesio: uma modelo da fascizante Calvin Klein que, não sendo «gorda», é certamente volumosa; uma manequim que troca as figuras à Giacometti pela Venús de Willendorf.

16.11.14

Ela isto, ela aquilo

Parece-me que Bonnie «Prince» Billy nunca tinha tocado em Portugal um repertório tão centrado na temática amorosa. Canção após canção, ele vai dizendo «she» isto, «she» aquilo, o humorismo que também usa dando lugar a uma intensidade sisuda, mas não deprimente. O concerto do São Luiz foi em formato de quinteto: contrabaixo, bateria e três guitarras (uma delas de Matt Sweeney). Will Oldham, de seu nome civil, é o menos glamouroso dos artistas. Careca e de barba hirsuta, traz para palco um saco de pano com folhas soltas e a harmónica, demora-se em afinações, conversa com os músicos, puxa várias vezes as calças para cima, bebe minis, tem tiques desconjuntados com a perna, e dá uns urros ao género de vaqueiro demente. Quando não conhecemos determinada canção, não adivinhamos facilmente o que se segue, os versos têm uma imagética bizarra, estruturas anómalas e rimas imprevistas, e às vezes há uns «recitativos». «I See a Darkness», talvez a obra-prima de um catálogo vastíssimo, veio antes dos «encores», foi submetida ao tratamento dylanesco de mudanças de velocidade e de ânimo, e ficou menos estarrecedora, mais animada, mas ainda assim reconhecível, e estrondosa. Logo a abrir tínhamos tido as minhas duas interpretações favoritas da noite, «Teach Me To Bear You» e «My Home Is the Sea», momentos vigorosos de confessionalismo obscuro e de poesia ruidosa. Que mais se pode pedir?

O captain














What power he has, only I know
Now I have let my captain go

15.11.14

Um autocolante

Não conheço nenhuma filosofia tão sucinta e tão justa como a deste autocolante: «Do no harm but take no shit». É o meu lema de 2014.

Junção

Uma aluna do Instituto de Odivelas contesta assim a integração da sua escola no Colégio Militar: «A junção com rapazes não faz de nós melhores pessoas». Eu chamo a isto um ensino de qualidade.

14.11.14

Hoje nas livrarias

















Última Semana, antologia de Hugo Williams (Inglaterra, 1942), é o sétimo título da colecção de poesia da Tinta-da-china.

13.11.14

Darwin says let him die

O doutor House diz isto sobre um dos seus doentes: «Darwin says let him die». Claro que Darwin nunca disse nada disso, e mesmo que tivesse dito. Um médico obedece a Hipócrates, não a Darwin. Mas imaginemos que House não era médico: a frase seria menos chocante e não teria grande graça. Quem protege os fracos tem direito a brincar com o triunfo dos fortes. Quem despreza os fracos não tem direito a nada.

12.11.14

Animais

Dois tipos de animais: os que mostram os dentes, agressivos, e os que oferecem o cachaço, submissos. Agora escolhe.

11.11.14

Isso sou eu



All train compartments smell vaguely of shit. It gets so you don't mind it. That's the worst thing that I can confess. You know how long it took me to get there? A long time. When you die you're going to regret the things you don't do. You think you're queer? I'm going to tell you something: we're all queer. You think you're a thief? So what? You get befuddled by a middle-class morality? Get shut of it. Shut it out. You cheated on your wife? You did it, live with it. You fuck little girls, so be it. There's an absolute morality? Maybe. And then what? If you think there is, then be that thing. Bad people go to hell? I don't think so. If you think that, act that way. A hell exists on earth? Yes. I won't live in it. That's me.

[David Mamet]

Pode acontecer

Pode acontecer que abominem as nossas virtudes e se entediem com os nossos defeitos.

10.11.14

É / não é

O amor não é uma profissão
apresentável ou inapresentável

o sexo não é um dentista
que enche a contento inchaços e cavidades

tu não és o meu médico
tu não és a minha cura,

ninguém tem esse
poder, és apenas uma companhia para a viagem

Desiste da preocupação clínica,
tão abotoada e atenta,

permite-te um pouco de raiva
e permite-me um pouco de raiva

uma raiva que não precisa da tua
aprovação nem da tua surpresa

que não precisa de ser legalizada
que não é um antídoto contra uma doença

mas contra ti,
que não precisa que a entendam

ou lavem ou caustiquem,
mas que precisa em vez disso

de falar uma e outra vez em voz alta.
Permite-me o uso do tempo presente.


[«Is/Not» (1974), de Margaret Atwood, versão PM]

Do sarcasmo

Uma amiga luso-canadiana diz-me que nos últimos tempos Margaret Atwood se tornou insuportável, com a insistência em romances distópicos que nada acrescentam a The Handmaid's Tale (1985), e com declarações sarcásticas ou azedas, ainda mais do que é costume, sobretudo desde que deram o Nobel a uma outra canadiana. Mas eu tropecei anteontem na poesia de Atwood, que há uns anos comprei e arrumei nas estante, sem ligar nenhuma, e agora gostei de alguns poemas «amorosos», como os de You Are Happy (1974), título tão obviamente sarcástico que chega a ser desagradável.

9.11.14

O muro e as torres

Na minha memória individual, a História com maiúscula tem duas datas apenas: 9 de Novembro de 1989 e 11 de Setembro de 2001, o muro e as torres, o comunismo e o terrorismo. Muitas foram as decisões catastróficas da América depois de 2001, mas nunca esquecerei o choque e o asco, os inimigos e os amigos dos inimigos. Muitas esperanças se goraram neste quarto de século desde 89, sobretudo na Rússia, mas ninguém nos tira a alegria daqueles dias, a liberdade de meia Europa, e aquela frase que ouvi a um poeta romeno: «Vocês dizem que imaginam o que nós sofremos, mas não, não imaginam».

8.11.14

Hooligan













Don't blame the sweet and tender hooligan, hooligan
Because he'll never, never, never, never
Never, never do it again, not until the next time

Etc

Eu era uma personagem de Thomas Hardy: tinha uma crença profunda que me consolava de uma ironia superficial. Agora, é uma espécie de cinismo que me consola da descrença: não acredito em nada porque não há nada em que acreditar, etc, etc.

7.11.14

Primeira obra


Quarentas

Um amigo diz-me: «Uma das coisas boas desta idade é que temos mais auto-estima». Não tenho nenhuma estima pela noção de «auto-estima», mas concordo com ele. Aos quarentas já nos damos ao respeito, e queremos estar com quem nos respeita. Já perdemos demasiado tempo com angústias e agressões. Já podemos todos fingir que valemos alguma coisa.

6.11.14

Primeiras impressões

Imaginaste que com a idade tudo ganharia uma outra subtileza. Em vez disso, tens uma vida em que as primeiras impressões nunca se enganam.

5.11.14

Alphaville

Nunca mais revi Alphaville, mas nunca esqueci aquela citação de Bergson, apresentada como um cartão de visita: «Je crois aux données immédiates de la conscience». Como são dados «imediatos», podemos confundi-los com os sentidos, falíveis e precários; mas de facto são dados da consciência, menos empíricos e menos ingénuos. Depois de Alphaville, sempre que me lembrei disso, procurei acreditar nos dados imediatos da consciência, que raramente se enganam. Mas às vezes esqueci-me, ou não acreditei na minha consciência, tão imediata e inequívoca ela se mostrava. Bem me fodi.   

4.11.14

Ideologias

«A esquerda, a direita, o agora: haverá espaço para as ideologias no mundo actual?» é o tema de um debate promovido pelo Núcleo de Estudantes de Direito da Associação Académica de Coimbra. Uma vez que a direcção da Faculdade de Direito não autorizou a cedência das suas instalações, a sessão terá lugar no Departamento de Matemática da Faculdade de Ciências e Tecnologia (sala 17 de Abril). Estarei em conversa com Rui Tavares, com moderação de Maria Manuel Veloso, da FDUC. Amanhã, quarta-feira, 5 de Novembro, às 17h.

Permanência



Uma chávena

Não me lembrava destes ferozes versos de Lunch Poems: «when the tears of a whole generation are assembled / they will only fill a coffee cup». Já não estamos no «I have measured out my life with coffee spoons» de Eliot: não são as colheres de café que medem a vida de um homem, mas as chávenas de café que contêm as escassas lágrimas de uma geração. Quando, há quase vinte anos, li o poema de Frank O'Hara, não acreditava decerto que isto pudesse ser verdade: que uma geração, a minha geração, não chorasse lágrimas suficientes para encher uma chávena. Hoje, creio que nunca chorará o suficiente para encher uma colher. É a medida da sua infelicidade.

2.11.14

Linha vermelha



A expressão «linha vermelha» vem da «thin red line» popularizada num poema de Kipling e no romance de James Jones que Terrence Malick adaptou ao cinema. No sentido original, não se tratava de uma qualquer exigência mas de uma manobra de defesa. Em 1854, durante a Batalha de Balaclava, na Guerra da Crimeia, um diminuto regimento escocês, com homens envergando casacos vermelhos e empunhando baionetas, protegeu o acampamento inglês do ataque da poderosa cavalaria russa. A «linha vermelha» era uma linha que não se podia ultrapassar mas também uma linha que parecia ultrapassável, não fosse o estoicismo um pouco suicida do regimento escocês.

O rapaz tatuado de Birkenhead

What she read, all heady books
She'd sit and prophesize
It took a tattooed boy from Birkenhead
To really, really open her eyes


Há vinte e um anos que sei que neste jogo ganha sempre o rapaz tatuado de Birkenhead. O primeiro que conheci era um miúdo do Entroncamento, cativante, sarcástico, inócuo. Depois, os espécimes foram-se modificando, já se levavam ou os levavam inusitadamente a sério, enquanto na sociedade desaparecia a última e fictícia resistência ao darwinismo e aumentava o fascínio dos homens básicos. «It took a tattooed boy from Birkenhead»: lembro-me de não ter percebido isso, e de não ter demorado muito até que percebesse.

1.11.14

Proclamação

Alguém me avisou que eu estava a ser demasiado «proclamatório». E que a proclamação é uma forma de auto-convencimento ou de denegação. Eu devia saber isso: nunca fui tão insensato como quando me declarei sensato, nunca fui tão infantil como depois de descobrir a maturidade, nunca fui tão ingénuo como quando achei que tinha aprendido.