31.8.14

Uma lição

Gosto do verbo inglês «to humble», que significa «envergonhar», «rebaixar» ou «humilhar». É um verbo negativo com uma conotação positiva: como quando somos «humilhados» para que nos tornemos mais humildes. Não é uma ofensa: é uma lição.

Virar costas













Ninguém imaginava que «Günther Bachmann» (O Homem Mais Procurado, 2014) fosse o último papel como protagonista de Philip Seymour Hoffman. Estreado agora, depois do que aconteceu, o filme vê-se de forma forçosamente diferente, sentimos o público muitíssimo mais atento e grave, porque o actor está à nossa frente e está morto, porque gostávamos dele, porque nos faz falta. Hoffman especializou-se em criaturas infelizes, e este Günther é uma desgraça: acabrunhado, tenso, mal-amanhado e com mau aspecto. Claro que se trata de uma personagem, e de uma personagem de Le Carré: um obcecado desesperançado, num mundo em que os bons não se distinguem grandemente dos maus. Mas todos pensamos que estamos a ver o homem, e não apenas a personagem ou o actor. Por isso é tão difícil aquela última cena, quando Günther, moralmente furioso e vencido, sai do automóvel e se perde na cidade, virando-nos as costas de vez. Numa evocação póstuma de Hoffman, Le Carré escreveu: « (…) quando ele se ia embora, nunca tínhamos a certeza de que voltasse; era como alguém disse do poeta alemão Hölderlin: sempre que saía de um sítio, receávamos não voltar a vê-lo».

Génios

E ainda isto no Humano, Demasiado Humano: «Como surge o espírito forte (esprit fort)? Esta é, num único caso, a questão da produção do génio. Donde vêm a energia, a força inexorável, a persistência, com as quais o indivíduo, opondo-se ao costume, tenta obter um conhecimento inteiramente individual do mundo?». Gosto daquele parêntesis francês, como se Nietzsche reivindicasse a subtileza de um aristocrata moralista. Mas o que importa, como se viu, não é a virtude, nem a consciência, mas a liberdade, a liberdade integral, que se manifesta através do génio. Ao «espírito forte» permite-se tudo, até a vileza, porque ele está a exercer um domínio pessoal sobre o mundo. Lembro-me então que sempre ouvi chamar «génios» aos fortes meus conhecidos. Quanto aos fracos, estão a mais nesta história.

30.8.14

Golpes

















Francis Bacon regressava às vezes a casa com o nariz partido e vários golpes e hematomas na boca, na cara, nos olhos, na cabeça. Tinha saído de casa à procura disso mesmo. Mas quando vemos os seus auto-retratos, a figuração é tão distorcida que é impossível distinguir aqueles em que está normal e aqueles em que levou uma sova.

De cada qual

Um nojo manifestado de acordo com a educação e os eufemismos de cada qual. Qual é o problema? Ninguém está obrigado a não ter nojo: nem os coveiros.

A verdadeira moral

Os fracos invocam em sua defesa a «virtude» e a «consciência». Já vimos o que Nietzsche diz sobre a suposta virtude dos fracos. E eis o que escreve em Para a Genealogia da Moral: «O homem activo, agressivo, violento, está sempre cem passos mais próximo da justiça do que o homem reactivo. Porque, precisamente, não tem necessidade de depreciar com falsidade e preconceito o seu objecto como o faz - como é obrigado a fazer - o homem reactivo. E é por isso que, de facto, em todas as épocas, o homem agressivo - o mais forte, o mais corajoso, o de maior nobreza - teve sempre pelo seu lado um olhar mais livre e uma melhor consciência (...)». O fraco agarra-se aos «valores», mas o forte é que é a verdadeira criatura moral, a única que age em completa liberdade.

Empatia

Não é uma questão de castas, explicam-me, mas de forças. Se fores suficientemente forte, rompes o sistema de castas, dizem-me, com uma troça a que chamam empatia.

29.8.14

Lembrete

«No Irish, No Blacks, No dogs», diziam os anúncios.

Encarniçamento (2)



I am transformed into
Rain and dirt and weeds and leaves

I am destroyed and still
Walking to the place again.


Ercarniçamento

Uma cena habitual no cinema: a massagem cardíaca desesperada, que continua depois de o doente morrer, quando já é uma tentativa inútil, grotesca, um encarniçamento, quase uma forma de tortura. E a cara e os gestos de todas as outras pessoas à volta: «não vale a pena, já não vale a pena, acabou».

28.8.14

A última das virtudes

Nunca levei demasiado a sério a apologia da «força» em Nietzsche: metade é uma evidência antropológica e a outra metade é sobretudo bazófia. Em compensação, dei sempre muita atenção ao seu ódio à fraqueza, fundamento do seu anti-cristianismo. Como nesta passagem da Gaia Ciência: «Que nos interessa o ouropel com que um doente enfeita a sua fraqueza! Pode exibi-la até como a sua virtude, não subsiste dúvida de que a fraqueza torna as pessoas brandas, ah!, tão brandas, tão íntegras, tão inofensivas, tão “humanas”!». Nietzsche despreza isto nos outros: eu apenas o desprezo em mim. Não tenho orgulho nisso, tenho pena até, mas compreendo a repugnância pagã por essa última das virtudes.

27.8.14

Um deus desconhecido
















Em Shadowlands (1993) Richard Attenborough conseguiu fazer um «weepie» com a história do casamento tardio e viuvez precoce de C.S.Lewis, treslendo por completo o caso humano e teológico que escolheu. Era um cineasta humanista, mas nunca foi um cineasta subtil. Não importa, porque não são os filmes que dirigiu que ficam, nem os mais bem-intencionados, os Gandhi e outros que tal, mas três ou quatro papéis que interpretou. E acima de todos o do meliante Pinkie Brown, no Brighton Rock (1947) de John Boulting, um dos dez ou doze melhores filmes britânicos de sempre. Pinkie é uma das personagens mais espantosas de Graham Greene, no grandíssimo romance homónimo: o homem mau que é incapaz de ser bom, mas que faz bem aos bons, no caso a sua namorada, a aluada Rose. Incapaz de perceber que vive com um gangsterzinho de quinta categoria, que lhe mente e se serve dela, Rose acreditará em Pinkie até ao fim, e até depois do fim. Attenborough, esquálido, rude e hostil, farto de tanta candura, grava num disco a mais violenta carta de desamor: «You wanted a recording of my voice, well here it is. What you want me to say is, ‘I love you’. Well, I don’t. I hate you, you little slut…». Não há razão para Pinkie odiar assim Rose, excepto por ódio à bondade e à inocência, porque o mundo é cão e não merece pessoas inocentes e bondosas. Depois da morte matada de Pinkie, Rose põe a tocar essa recordação, gravada numa feira, e que ela nunca tinha ouvido; mas o disco está riscado, «What you want me to say is ‘I love you”», diz Pinkie, e então o disco soluça, «I love you», «I love you», «I love you», «I love you». Uma redenção que é uma mentira mas que, resgatando Rose, salva também Pinkie. Como se ele fosse um deus desconhecido.

25.8.14

Onças e amigos

Expliquei-lhe que tinha de trocar de vez os Eusebiozinhos por Crafts, ter amigos em vez de onças. Ela duvidou que eu conseguisse isso em Lisboa.

História romana

E mal tinham dado alguns passos, Carlos, parando, baixando a voz no rumor da rua:
- Ouça lá! O Euzebiosinho disse-lhe alguma coisa a meu respeito, Craft?
O outro confessou que Euzebiosinho, apenas lhe aparecera no quarto, rompera logo, mascando as palavras, a informa-lo da misteriosa vida de Carlos nos Olivais...
- Mas eu fi-lo calar, acrescentou Craft, declarando-lhe que era tão pouco curioso que nem mesmo quisera ler nunca a
História Romana...

[Eça de Queirós]

18.8.14

Exactamente

Mal regresso a Lisboa vejo-os logo, a eles ou a outros, nos cafés do costume e no escárnio habitual. Gente com quem me dava, a quem nunca quis mal, amigos uns dos outros, alguns até meus amigos, julgava eu. Hoje lembram-me as personagens daquele conto machadiano que termina assim: «Depois do que acabamos de contar, Vasconcelos e Gomes encontram-se às vezes na rua ou no Alcazar; conversam, fumam, dão o braço um ao outro, exactamente como dois amigos, que nunca foram, ou como dois velhacos que são».

13.8.14

Lauren Bacall 1924-2014



You just put your lips together and blow.

12.8.14

Robin Williams 1951-2014















Um comediante genial que infelizmente nunca entrou numa comédia genial. Era o mais vital dos humoristas, o mais frenético também, e nos últimos anos o mais confessional, às voltas com as suas doenças e dependências, exibindo uma exuberância quase desesperada. Talvez nunca tenha sido tão brilhante como no espectáculo ao vivo Weapons of Self Destruction (2010), um título que agora nos custa.

8.8.14

Gostos

O gosto das mulheres nem sempre é compreensível, mas raramente é infundado.

1.8.14

Lei Seca




















Lei Seca, uma selecção de textos do blogue homónimo, chega hoje às livrarias. O Malparado, por sua vez, vai de férias.