31.1.14

Helicópteros


Ouviu helicópteros na ventoinha. Mas não era uma ventoinha: eram helicópteros.

Dos milagres

Tinha lido com certo entusiasmo uma frase de Jacques Rigaut que dizia que «o maravilhoso não é raro, a incredulidade é mais forte do que os milagres». A incredulidade, diz Rigaut, é tão resistente que torna milagrosos e maravilhosos os acontecimentos comuns em que não acreditávamos. Pensei citar Rigaut e dar-lhe razão, mas claro que de imediato o milagre se revelou bem menos fiável do que a incredulidade. [É o mesmo texto, é.]

Estatísticas

Impossibilitado de conhecer «a Humanidade», conheci bem umas quatro (cinco?) pessoas. E depois extrapolei.

A juventude esconde-se

Quase toda a gente se envergonha da sua juventude, não é totalmente verdade que nos desperte saudades, antes pelo contrário, é relegada ou evitada e, com facilidade ou esforço, a sua origem confinada à esfera dos pesadelos, ou dos romances, ou do que nunca existiu. A juventude esconde-se, a juventude é secreta para quem não nos conheceu em jovens.

[Javier Marías, Coração Tão Branco, 1992]

30.1.14

Estantes



Enquanto organizo nas estantes novas e velhas a minha considerável biblioteca de poesia, penso «de que me serviu tudo isto, além de uma fé intransitiva e de uns zumbidos comoventes?»

Da poesia

Na Rússia, numa cidade dos montes Urais, um amigo matou outro à facada durante uma discussão sobre os méritos comparados da poesia e da prosa. Escusado será dizer que o assassino preferia a poesia.

O corredor estreito

Montherlant dizia: «O que não me apaixona, aborrece-me». É uma bela frase de efeito, sobretudo para quem, como é o meu caso, se aborrece com grande facilidade e se apaixona quando o rei faz anos. Mas é impossível evitar o quotidiano, e difícil fugir às decepções. De modo que a vida há-de ser muitas vezes esse corredor estreito entre os amores e o tédio.

29.1.14

Obrigam de certa maneira

















Je n'ose plus guère vous dire que je vous aime car des choses aussi profondes obligent en quelque sorte ceux à qui on les écrit.

[Guillaume Apollinaire, Lettres à Lou, carta de 3 de Outubro de 1914]

28.1.14

Esquiva

Não estão juntos mas fazem coisas juntos, como se estivessem nas coisas que fazem, como se se juntassem de maneira esquiva.

27.1.14

Do meu bairro

O argentino Juan Gelman ganhou o Prémio Cervantes em 2007, e o mexicano José Emilio Pacheco em 2009. Quando lhe chamaram «um dos maiores poetas hispânicos vivos», Pacheco respondeu: «Nem sequer sou um dos maiores do meu bairro». Pacheco vivia no bairro de Condesa, na Cidade do México, e Gelman era seu vizinho há trinta anos. Morreram ambos em Janeiro de 2014.

Tirado às escondidas

Fogo

Lembram-me que «enfatuation» se pode traduzir por «fogo-fátuo», e que uma «enfatuation» nos torna pessoas «enfatuadas». «Então não é isso», asseguro, «então não é de todo isso».

Lição

O cristianismo ensinou-me que em todos os momentos tenho mais do que mereço.

Vergonha

Não tinham vergonha de estar ao lado um do outro. E isso era pedir muito a ambos.

26.1.14

Recomeçar

Uma vontade

Certos cristãos acham que as pessoas que dizem que «gostavam de acreditar» já são, de algum modo, crentes. Talvez tenham razão, nos assuntos sagrados como nos profanos: «querer acreditar» é até mais tocante do que acreditar, porque é uma vontade e não um facto.

24.1.14

Exposição

Não te quero expor, disse ele, não me importo que me exponhas, disse ela, até achava um indício bonito.

22.1.14

O que é

obrigado Deus por este dia tão
incrível: pelo espírito verdejante e lépido das árvores
e um genuíno sonho azul de céu; e por tudo
o que é natural o que é infinito o que é sim

(eu que estava morto estou de novo vivo,
e este é o aniversário do sol; o aniversário
da vida, do amor e das asas: e do feliz
enorme acontecimento que é a terra)

como é que provando tocando ouvindo vendo
e respirando alguma – levantada do «não»
de todo o nada – simples criatura pode
duvidar do teu inimaginável Eu?

(agora os ouvidos dos meus ouvidos estão atentos e
agora os olhos dos meus olhos estão abertos)


[e.e. cummings, versão PM]

21.1.14

Veteranos



Como o capitão Benjamin L. Willard, ele ouvia helicópteros nas ventoinhas.

Vida nova

Da questa visione innanzi cominciò lo mio spirito naturale ad essere impedito ne la sua operazione, però che l'anima era tutta data nel pensare di questa gentilissima; onde io divenni in picciolo tempo poi di sì fraile e debole condizione, che a molti amici pesava de la mia vista; e molti pieni d'invidia già si procacciavano di sapere di me quello che io volea del tutto celare ad altrui. Ed io, accorgendomi del malvagio domandare che mi faceano, per la volontade d'Amore, lo quale mi comandava secondo lo consiglio de la ragione, rispondea loro che Amore era quelli che così m'avea governato. Dicea d'Amore, però che io portava nel viso tante de le sue insegne, che questo non si potea ricovrire. E quando mi domandavano «Per cui t'ha così distrutto questo Amore?», ed io sorridendo li guardava, e nulla dicea loro.

20.1.14

Importância



«If she'd have known she'd have shown me»: claro que faz diferença traduzir «se ela soubesse tinha-me mostrado» ou «se ela tivesse sabido tinha-me mostrado». «Se ela soubesse» refere-se ao conhecimento: claro que ela sabia. Mas «se ela tivesse sabido» diz respeito a um efeito que ela antecipava ou não, e à importância que ela me atribuía. Ou não.

Dos milagres

Tinha lido com certo entusiasmo uma frase de Jacques Rigaut que dizia que «o maravilhoso não é raro, a incredulidade é mais forte do que os milagres». A incredulidade, diz Rigaut, é tão resistente que torna milagrosos e maravilhosos os acontecimentos comuns em que não acreditávamos. Pensei citar Rigaut e dar-lhe razão, mas claro que de imediato o milagre se revelou bem menos fiável do que a incredulidade.

Acidente



Ela chegou como um sinal de trânsito que indicasse: acidente daqui a duzentos metros.

Metade das palavras

it was hard to love a man like you
goodbye was half the words you knew (...)

in a life built out of only goodbyes
is there even room for you to try


[Jason Molina, que também se foi embora]

Um facto

É isto: «discursos exagerados que escondem afectos medíocres». Sobretudo porque este «medíocres» não parece qualificativo mas substantivo: um facto sobre os afectos.

Ursos e estrelas

Il s’était tant de fois entendu dire ces choses, qu’elles n’avaient pour lui rien d’original. (...) Il ne distinguait pas, cet homme si plein de pratique, la dissemblance des sentiments sous la parité des expressions. Parce que des lèvres libertines ou vénales lui avaient murmuré des phrases pareilles, il ne croyait que faiblement à la candeur de celles-là; on en devait rabattre, pensait-il, les discours exagérés cachant les affections médiocres; comme si la plénitude de l’âme ne débordait pas quelquefois par les métaphores les plus vides, puisque personne, jamais, ne peut donner l’exacte mesure de ses besoins, ni de ses conceptions, ni de ses douleurs, et que la parole humaine est comme un chaudron fêlé où nous battons des mélodies à faire danser les ours, quand on voudrait attendrir les étoiles.

[Flaubert]

3.1.14

Pensei que sabias o teu lugar

Uma grande agitação

Fala também do estilo, e da insistência de Flaubert no estilo, que de certa forma não o atrai, porque o perigo é «escrever sobre nada». É esse o seu principal problema com a noção de estilo como base da ficção?
É. Voltamos à sua pergunta sobre «A Herança Perdida» ser sobre o entusiasmo e a melancolia. Sinto isso em relação ao Flaubert. É impossível ler o Flaubert e não pensar, «uau, isto é uma escrita tremenda e um extraordinário passo em frente para o romance». Por outro lado, sim, abordo com melancolia esse sentimento de insegurança, armadilha e dificuldade que o Flaubert traz E a aparente primazia do estilo sobre o conteúdo, esse desejo de obliterar o conteúdo e de escrever um romance apenas de linguagem, sobre nada, sem matéria. Consegue ver-se isso continuado de modo inconsciente pelo «nouveau roman». E às vezes também se vê um pouco nas obras de pessoas como Nabokov. Não tanto na sua ficção mas nas suas opiniões críticas. As suas opiniões sobre outros escritores eram quase sempre absurdamente depreciativas.

Sobre Dostoiévski, por exemplo.
Dostoiévski, Thomas Mann, Stendhal, Camus, não tolerava nenhum deles, achava que eram confusos e desleixados. Claro que isso é ridículo. Flaubert, quando leu o «Guerra e Paz» achou que era extraordinário mas que não funcionava. E o Henry James também disse que era um «enorme monstro frouxo, a arrastar a sua forma enorme pelo chão». Até certo ponto podemos dizer que na literatura contemporânea há um contínuo combate entre uma linha jornalística, que é extensa, e que tem muita informação, e uma linha crítica, que é pequena, distinta, formal, controlada.

Mas há um elemento de estilo de que gosta, o fluxo da consciência, que curiosamente remonta a Jane Austen, que diz ter sido a primeira autora a mostrar o raciocínio interior das personagens. Essa afirmação não é muito óbvia.
Pois não. Mas pode constatar-se num romance como o «Ema», e pode ver-se no «Orgulho e Preconceito» à medida que a heroína fica cada vez mais agitada e mais reflexiva sobre o que fez de errado. A descrição do seu estado mental, que começa a explodir um pouco nos seus pontos de exclamação, nos travessões, nos parêntesis, à medida que Austen tenta representar uma grande agitação na página. E ainda não consegue fazê-lo bem, escreve apenas quarenta anos antes de Flaubert descrever Emma Bovary, pensando, sentada a ler, a sonhar, a fantasiar. Austen tem um pé na era moderna.

[excerto da minha entrevista a James Wood, crítico da New Yorker, que será publicada no Expresso de amanhã]

2.1.14

Life should mean a lot less than this

A hora de chumbo

This is the Hour of Lead —
Remembered, if outlived,
As Freezing persons, recollect the Snow —
First — Chill — then Stupor — then the letting go —


[Emily Dickinson]

Uma sabedoria

Uma sabedoria da infelicidade: definir o nosso valor numa única frase.

1.1.14

Competição

Costumo dizer que «não sou competitivo», mas é talvez uma formulação eufemística, piedosa: a verdade é que me vejo em «competição» com pessoas melhores do que eu. E então não vou a jogo.

Quando



Mas quando, para quando, até quando? Posso adiar indefinidamente. Ou dizer «quando a minha mentalidade estiver a par com a minha biologia». Vai dar ao mesmo.

[The Smiths, «I Want The One I Can't Have», álbum Meat is Murder, 1985]