15.11.13

O lado selvagem

[Tal como prometido aqui, reproduzo o meu «obituário» de Reed, publicado há duas semanas no Expresso].

De entre todos os testemunhos adequados a uma evocação de Lou Reed, que morreu esta semana, aos 71 anos, meses depois de um transplante hepático, escolhi voltar aos do seu maior amigo e inimigo. Não me refiro ao mentor Andy Warhol, ao colega-rival John Cale, ou ao ambíguo David Bowie: estou a falar de Lester Bangs, o crítico rock mais idiossincrático e brilhante e destrambelhado.

Bangs fez várias entrevistas célebre a Reed, incluindo uma chamada “Deaf-Mute in a Telephone Booth: A Perfect Day With Lou Reed” (1973), e outra, publicada na incrível revista “Creem”, intitulada “Let Us Now Praise Famous Dead Dwarves, or, How I Slugged It Out with Lou Reed and Stayed Awake” (1975) [estão disponíveis nas duas colectâneas dos seus escritos, às quais volto sempre como gozo e espanto]. Os textos são longuíssimos e ao estilo subjectivista e ganzado de “gonzo journalism”, com conversas e episódios surreais, e momentos em que parece que a situação vai descambar. Reed, ainda por cima, era um entrevistado desconfiado, arisco, hostil. Mas Bangs não conhecia o medo.

Diga-se que Lester idolatrava Lou. Para ele tratava-se do “numero uno”, “the man”. Reed era “o gajo que deu dignidade, poesia e rock’n’roll ao “smack”, ao “speed”, à homossexualidade, ao sadomasoquismo, ao homicídio, à misoginia, à passividade desajeitada e ao suicídio”, coisas triviais, umas, outras tenebrosas; mas tanto Bangs como Reed sabiam que havia um “wild side” efectivamente vivido e um mundo mental mais depravado ainda, não exactamente falso mas “ficcional”.

Reed era um moço judeu de Long Island, feiote, bissexual, que foi tratado a electrochoques, estudou artes e música na universidade, conviveu com o desafortunado poeta Delmore Schwartz e rumou a Nova Iorque, onde conheceu um genial galês que gostava de música vanguardisto-destrutiva, um artista pop eslovaco com sentido do espectáculo e uma valquíria lindíssima e assustadora. Formaram uma banda, The Velvet Underground (juntamente com um altivo guitarrista e uma minorca quase tribal) e gravaram um álbum inacreditável. Quando eu era adolescente, achava o rock agradável e inócuo; mas um dia chegou-me às mãos “The Velvet Underground & Nico” (1967), e então soube o que se pode fazer com guitarras indomáveis e histórias do submundo.

Foi também isso que o miúdo Lester Bangs admirou em Lou Reed e seus comparsas. Ainda em época de ilusões tolinhas sobre a bondade humana, os Velvet cantavam sobre prostitutos, chibatadas, sobre estar numa esquina à espera do “dealer” que vem vender heroína: uma canção viciante chamada “I’m Waiting for the Man”. A banda não durou muito, claro, Cale e Reed não se suportavam, mas depois do famoso “álbum da banana” ainda houve pelo menos outros dois discos magníficos, tão experimentais como um La Monte Young, ou então movidos a baladas comovidas. Os Velvet têm “Venus in Furs” e “I’ll Be Your Mirror”; “White Light/White Heat” e “Here She Comes Now” e “Sister Ray”; têm “Pale Blue Eyes”, “Jesus” ou “I’m Set Free”. Disse-se que os discos venderam pouco, mas que toda a gente que os comprou formou uma banda.

A imagem ajudava. Lester Bangs admirava, todos admirámos, ou Lou Reed anguloso, vestido de negro, com óculos escuros, homem gasto, de voz áspera e guitarra percutida. Mas Bangs também viu de perto o carisma, o ressentimento, o uísque, as anfetaminas, o Valium, a desconversa e a pretensão. Reed queria ser o “Dostoiévski das ruas” (como se Dostoiévski não tivesse andado nas ruas), mas as suas melhores “lyrics” [há uma versão portuguesa, de Luís Maio, “Luzes da Cidade”] não são geniais: são verdadeiras e cruas.

Conheço boa parte da discografia a solo, mas só gosto realmente do “glam” bowiano de “Transformer” (1972), do conceptual e toxicodependente “Berlin” (1973) e do feroz “New York” (1989), esse catálogo das “mean streets”, com epidemias, racistas, travestis, sem-abrigo, e gente corajosa e inabalável, desfilando num “Halloween Parade”. Dos outros discos, que comprei quase por coleccionismo, só me tocaram algumas canções esparsas, e dois ciclos integrais, “Songs for Drella” (1990), agridoce homenagem a Warhol, e “Magic and Loss” (1992), espantosa colecção de elegias. Sou incapaz de dizer, como Bangs, que um objecto como “Metal Machine Music” (1975), álbum de estridente “feedback” e distorção, é uma obra-prima. Mas percebo: Bangs gostava daquele “fuck you” em forma de vinil, achava um gesto genial de “despersonalização”, longe da pose decadente e algo grotesca dos anos “Bowie”, tempos mais sofisticados e menos “verdadeiros”.

Para Lester, o fascínio por Reed tinha que levar à decepção, porque ele idolatrava sobretudo o homem genuinamente animado pela ideia primitiva de que “um acorde é bom, dois já é um abuso, e três é jazz”, o homem que abominava a normalidade e que representava “the most fucked-up things that I could ever possibly conceive”. Tanto que Bangs fez a Reed esta pergunta decisiva: “Leva a mal que as pessoas apreciam o facto de ter vivido uma vida que elas considerariam negra, e de a ter vivido por elas?”.

Bangs morreu cedo e não acompanhou o Reed que trabalhou com Robert Wilson e musicou poemas de Poe e fez álbuns baseados na “Lulu” de Wedekind. Eu estive em dois concertos de Reed em Lisboa, ambos sem interacção ou grande chama: excepto, claro, quando apareciam “as coisas antigas”, aquelas que recordavam às pessoas uma existência negra que elas experimentaram, ou com que fantasiaram, ou que temeram. Esse lado selvagem que Reed viveu e inventou.