Estados de espírito (1)
Estou a trabalhar em vários textos ao mesmo tempo: obrigações semanais e mensais, encomendas, projectos meus, tentativas, rascunhos, mas é difícil escrever com continuidade; não pela «diferença de registos» mas pela mudança de estados de espírito. Ou antes: pela maneira como os «estados de espírito» nos dão determinada ideia sobre as nossas capacidades. Por exemplo, quando eu me sinto estúpido, é escandaloso pôr-me escrever um texto que se apresente como «crítico», ainda que seja um paragrafozinho hebdomadário; quando estou inquieto, não quero nada de que se espere grande continuidade; quando sou dominado pela incerteza, quase só tomo notas, que muitas vezes rasgo; só escrevo diálogos nos momentos em que o discurso das pessoas me é inteligível, o que tem dias; escrevo «ficção» quando me forço a mostrar que não tenho imaginação; e já fiquei anos afastado dos poemas por uma questão de repugnância, omissão que o mundo, aliás, agradeceu. Neste preciso momento, tenho três cadernos abertos à espera da caneta: mas um dos «temas» é demasiado elevado para alguém que perdeu a inocência; outro é excessivamente negro para quem ainda esta tarde teve um pequeno momento de euforia; e o terceiro é quase um «balanço de vida», mas será que estou em tempo de «balanços»? e que coisa é essa, a «minha vida»?