25.9.13

1453

Não conheço os romances do colombiano Álvaro Mutis (1923-2013), as «empresas e tribulações de Maqroll, o homem da gávea», geralmente descritos como aventuras marítimas e solitárias, à Conrad. Mas conheço a sua poesia da «terra quente», melancólica porque paradisíaca. E escrevi sobre o notável Diário de Lecumberri, que Mutis redigiu quando esteve preso por desvios financeiros.

Cito uma passagem da crónica que publiquei há tempos: «Há, a páginas tantas, uma passagem arrepiante em que a chuva faz apenas isso, cai, noite dentro, impenitente, violenta e livre, sobre os homens imóveis e mudos. Outra cena igualmente terrível e aquática acontece durante os banhos de vapor. Os presos, nus, anónimos, ocultados, numa liberdade aparente, contam, bem alto, histórias. Histórias que talvez nunca contassem se estivessem de uniforme prisional, face a face, visíveis e expostos. Há os habituais consolos eróticos nos banhos, mas não é isso que interessa a Mutis, o consolo que ele nos desvenda diz respeito à imaginação, dezenas de homens amontoados e brutos, que cheiram a suor, sabão, desinfectante, e que descrevem, alto, uns aos outros, uma rapariga, uma bravata, uma cançoneta, é óbvio que muitas das histórias devem ser falsas, mas o que são “histórias falsas” quando ditas por homens que vivem com o fantasma da liberdade? / Mutis passou menos de um ano e meio em Lecumberri. Não pretende armar-se em vítima, nem sequer se apresenta como inocente. Mais do que a experiência pessoal, a prisão foi para ele uma experiência colectiva fundamental, a ponto de ter escrito, anos mais tarde, que sente por esses tempos «gratidão e ternura», algo que pouca gente diz de uma cadeia. Gratidão e ternura por ter descoberto o sofrimento e a comunhão. E porque isso o fez tornar-se romancista, inventar histórias falsas para nos dar liberdade».

Impressionou-me muito esse testemunho que encontra as razões da escrita num fracasso biográfico. Como também me tocou a amizade antiga e infalível do compatriota Gabo, apesar de Álvaro Mutis se declarar «monárquico» e ainda por cima «legitimista». E admiro a altivez pacífica com que Mutis fez saber que um escritor tem o mundo que quiser ter, aquele que está na sua cabeça, independentemente do que os outros achem acerca disso: «Nunca me meti na política, nunca votei, e o último facto que me preocupa de verdade (…) é a queda de Constantinopla às mãos dos turcos em 29 de Maio de 1453».